sábado, 13 de maio de 2017

BELCHIOR


Notícias há que nos abalam as colunas d’alma, fazem lacrimejar os olhos do coração, emudecem os lábios do espírito...

A partida de Belchior foi uma delas. Melhor: Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes. Ou, como ele, sorridente, gostava de dizer: o maior nome da Música Popular Brasileira. Brincadeiras à parte, trata-se realmente do mais alado e elevado letrista germinado no Brasil dos últimos cinquenta anos.

Como Robert Allen Zimmerman, o Bob Dylan, ele inseriu nas partituras da MPB um idioma diferenciado, com novos contornos de expressão poética.

O seu amigo e contemporâneo Guilherme Arantes bem pontuou: “Belchior, que eu não canso de homenagear de todas as maneiras, foi e sempre será o melhor letrista de canções transformadoras que já existiu. Uma mente privilegiada em cultura e de talento cortante e visceral”.

Porém, não era apenas a sua inventividade apocalíptica, a floração de versos com mensagens revolucionárias, que me impressionava. Era, sobretudo, sua capoeira de sensibilidade, sua profunda ternura para com a singeleza, sua paixão para revestir com charme e elegância as situações mais simples. Em seu primeiro grande sucesso, Mucuripe, ele já sinalizava essa capacidade extraordinária ao revelar que, mirando o paletó de linho branco, via, antes, a flor do algodão: “Calça nova de riscado, paletó de linho branco, que até o mês passado, lá no campo ainda era flor” ...

O ex-seminarista, que também perambulou no campus da Faculdade de Medicina e, depois, divagou pelos pátios da Filosofia, carregava no mais íntimo de si mesmo aquela inquietude particular dos reitores do espírito, dos enamorados da sabedoria, dos garimpeiros de asas, dos mineradores de sonhos.

Era temerário, assaz temerário imaginarmos que ele seguisse a saga dos iguais, o roteiro dos comuns, a trilha dos mortais. Eis o óbvio: um homem que imaginava serem seus os braços que se abrem no Corcovado jamais se quedaria conformado às injustiças mundanas, à engrenagem perversa desse mecanismo inexplicável do massacre de uma alma humana por outra humana alma. A barbárie das relações, o embrutecimento do cotidiano, o império da força feriram profundamente a camada mais sensível da sua pele poética. Com efeito, ‘mais angustiado que um goleiro na hora do gol’, ele constatou que ‘veio o tempo negro e, à força’, fez com ele ‘o mal que a força sempre faz’.

Mesmo assim, resolveu ‘viver a Divina Comédia Humana, onde nada é eterno’. Para os que diziam que estava vendo estrelas, ou que perdera o senso, resolveu afirmar que ‘enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto’.

E o menino – ‘alegre como um rio, um bicho, um bando de pardais’, que ‘adoçava o pranto no bagaço de cana do engenho’, criado entre ‘galos, noites e quintais’ - resolveu nos falar não das coisas que aprendeu nos discos, mas de como viveu e tudo o que lhe aconteceu. Desiludido com os ídolos, que ainda são os mesmos, desenganado com as aparências, que não enganam mais, proclamou que ‘viver é melhor que sonhar’ e confessou sua profunda dor: ‘saber que, apesar de termos feito tudo, tudo, tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais’.

Certamente, por tudo isso é que Belchior escolheu os últimos outubros de sua caminhada terrestre para viver como havia iniciado seus passos da juventude: enclausurado. Na aurora da vida, pensava em se entregar à clausura teológica; no crepúsculo, à clausura filosófica. Em ambas pedras pensativas se destacava o mesmo diamante, a mesma fulgurância verdadeira: o mineral da complicação, a esmeralda labiríntica, o magnetismo do surreal!

Como Franz Kafka, o maior escritor Tcheco, que só recebeu a coroa da glória após a morte, Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes foi batizado para viver a sina do sucesso póstumo.

No nosso cancioneiro alguns reis magos da composição conseguiram a façanha de nos presentear com melodias bonitas, nas quais reluzem o ouro da filosofia, o incenso da profundidade e a mirra da reflexão. São profetas que nos apontam a estrela de um outro Reino. Suas músicas se incorporaram às partituras do nosso platô mais altruísta. Da clausura, a luz de Belchior ilumina todos eles.



DIDEUS SALES – POETA DE TERRA E LUZ!

As águas de abril nos trouxeram Dideus Sales, um poeta de terra e luz nascido no segundo dia do quarto mês do ano. O poeta da emoção, que realizou a façanha de unir mar e sertão, é um confeccionador de asas poéticas em formato de flor e companheiro de lavra no roçado civilizatório do amor! Quando o calendário avisa que é o seu aniversário, os amigos são silenciosa e invisivelmente convocados para a celebração vital. Este ano, não sem resmungos lamentosos, não saboreie a fruta da amizade comemorativa. É uma doce rotina, como rotina também é o momento em que nos abre um novo livro, cuja soma JÁ ultrapassa mais de duas dezenas. É... Rotina... Porém, a retina da rotina não há que ter necessariamente um veio pejorativo. Pois, tudo é rotina. Em defesa da repetição, ou da rotina, Gerardo Mello Mourão proclamou que “só há uma forma boa de gerar um ser novo no ventre de uma fêmea: repetir o ato imemorial de Adão em cima de Eva, com um movimento entre a cintura e as ancas. O resto é inseminação artificial. A repetição gera o novo.”

Nesses últimos tempos tenho me interrogado a respeito da aura que circunda a poesia. O que vem a ser esse cantante, encantado e encantador fenômeno? Parece-me que Poesia é tudo aquilo que nos torna essencialmente mais humanos, nos aprofunda no humanismo ao ponto de nos aproximar do divino. A poesia é a divinização do humano. Nessa esteira, o primeiro e maior poeta é Deus, que com seu sopro mágico desenhou o universo, a magnitude da natureza, a comunidade dos seres vivos. Nessa trilha, todos somos ou podemos ser poetas. Os que desenvolvem a arte de concatenar os fonemas musicais, as obras arquitetônicas das estrofes arrebatadoras nada mais são do que sonoros instrumentos que o Poeta original distinguiu com a missão de apontar, como guias abençoados, as trilhas de Orfeu. Por isso que o amazônico Thiago de Mello proclamou: Não somos melhores nem piores. Somos iguais. Melhor é a nossa causa.

Em meio às notícias desairosas sobre a aridez de lideranças, ao deserto de nomes emblemáticos, relembramos com reverência um poeta que se fez líder global, herói maiúsculo, libertador singular, gênio da paz: Nelson Mandela!

O Dragão do Mar Africano, sem escrever poesias, foi um poeta militante, que na solidão da masmorra, na escuridão do cárcere, repetia um mantra: Não importa quão estreito o portão/ Quão repleta de castigo a sentença, / Eu sou o senhor de meu destino/ Eu sou o capitão de minha alma.

Mandela carregava na sua jangada existencial a lanterna da poesia. Senhor do destino, capitão da alma, general do coração e soldado da consciência, colonizou projetos pessoais e grupais e delineou um projeto de sociedade em que os seres não estavam apartados pela cor da pele, em que um governante não precisava demonizar o passado, em que os homens pudessem compartilhar civilizadamente o mesmo espaço social.

Quando dispunha do pescoço dos algozes e dele esperaram as correntes da vingança, estendeu a cadeira da reconciliação e ofereceu o banquete da paz. Quando lhe franquearam a continuidade no poder, lançou o manifesto do desapego. Era um homem superior, sintonizado com a melodia celeste. Como político, atuou não em função de uma parte ou de um partido, mas com uma invulgar compreensão de totalidade.

Era um homem, do ponto de vista ético, da melhor estatura, com visão de Estado. Um verdadeiro estadista. Poeta é, pois, todo aquele que se dispõe a romper os grilhões dos formalismos estéreis, das convenções descabidas, dos debates inúteis, do cotidiano infrutífero, da pusilanimidade dominante.

Poeta é aquele que, em qualquer barco de sonho, ultrapassa as ondas da superfície e alcança o espaço tranqüilo das águas profundas do oceano da vida. Dideus merece ser festejado porque é um desses desassombrados padeiros da massa poética.

Mello Mourão dizia que o poeta tem que ser assim: essencialmente poeta. De resto, tinha razão Rilke: cantar é ser. Às vezes somos forçados a fazer outras coisas na vida. Gerardo confessa ter tido a necessidade de exercer atividades as mais díspares na vida, como a política partidária e outras aventuras. Mas considerava tudo isso "adultério" à sua musa permanente, a poesia.

Dideus luta incessantemente para guardar fidelidade à poesia. Comete, vez por outra, alguns adultérios: ora edita uma Revista, ora se embrenha na produção rural, ora se entrega à intimidade de um microfone de rádio.

Todos esses ‘pulos de cerca’ são perdoáveis, porque ele é um incorrigível amante da poesia. E está sempre renovando esse matrimonio sagrado. O seu livro Poemas Telúricos é um delicado registro cartorial da renovação desses votos de amor. Telúrico vem de terra. Por isso fiz questão de consignar que a lírica desse fraterno filho da argila tem a altivez das carnaúbas, o perfume do mufumbo, a sombra do juazeiro, o desabrochar gratuito das jitiranas, o tempero do manjericão.

Um pequeno relato final. Johann Christian Friedrich Hölderlin, poeta lírico e romancista alemão, certa feita foi instado pela mãe a deixar esse negócio de poesia. (Sua genitora considerava isso um tanto perigoso, além de impedi-lo de viver uma vida normal). Em resposta, ele escreve à mãe: “a poesia é a coisa mais inocente do mundo.” Inocente, em alemão, é "unschuldig", que quer dizer uma coisa não-culpada, isenta de culpa. Em latim, “inocens” significa algo que não prejudica. Nocere é ser nocivo, prejudicar. Inocens é aquilo que não prejudica a ninguém e a nada.

Aprendamos com esse poeta terrestre, telúrico, a lição essencial da poesia: passar por essa vida insuflando a alegria, lançando sementes de sonho no coração dos nossos semelhantes e evitando causar prejuízos às coisas e às pessoas.

Parabéns, Dideus Sales, um Pereira de Jesus, rebento do rio Poty de Crateús, poeta de terra e luz!