domingo, 16 de setembro de 2018

DOM FRAGOSO, A FLAGRÂNCIA PROFÉTICA!


Pisando as babugens da infância e inebriado com as jitiranas de luz do sertão, o primeiro contato que tive com um religioso foi na fazenda Mondubim, do meu avô Tetero Bonfim. Um padre solene e sério, vestido em uma bela batina, passava para as festas religiosas do distrito de Assis, em Crateús. Seu nome: José Maria Moreira do Bonfim, que veio ao mundo no dia 16 de novembro de 1911, um dia após a elevação de Crateús à categoria de cidade. Era mais que um simples pároco, era um pai plúrimo, um padrasto severo, um professor dedicado, um pedreiro eclesial, um patrono civilizatório...

1980. Segundo ano de uma estiagem que se prolongaria pelos três anos seguintes. Inúmeras bocas falavam em abertura, palavra que eu pouco entendia. Na segunda quinzena do mês de junho, a eufórica expectativa nacional estava voltada para um homem que também eu pouco conhecia: João Paulo II. Os poros dos Meios de Comunicação Social do Brasil exalavam e exaltavam a personalidade de Sua Santidade. Certa tarde de abrasado sol, ao passar numa banca de revista, comprei um livrinho. Em casa, li-o de um só fôlego. Após a leitura, senti-me impulsionado por uma força estranha, invadido por algo novo, indescritível – como se uma tempestade divina transpassasse o meu corpo. Dirigi-me à minha mãe e, sem medir consequências, exclamei imatura e naturalmente: - Mamãe, quero ser Padre!

Guardo com carinho aquele livrinho. Ele conta a história de Karol Józef Wojtyla, o Santo Papa João Paulo II, esse homem que eu pouco conhecia. E foi através da leitura de sua biografia que nasceu em mim as primeiras vontades de conhecer o trabalho do Reino Celeste. Devo parte de meu despertar a ele.

Através de Osvaldo Fernandes, amigo do meu pai, entrei em contato pela vez primeira com o bispo de Crateús, D. Antonio Batista Fragoso, a quem expus o meu desejo de abraçar o sacerdócio. Ele me falou entusiasmadamente de uma experiência que estava em gestação - “seminaristas no meio do povo” – um projeto idealizado por ele e por Dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife.

Nesse ínterim, minha genitora compartilhou com sua madrinha, a professora Rosa Morais, o meu propósito de trilhar a íngreme vereda religiosa. A veneranda sacerdotisa da educação crateuense ponderou que poderia levar o assunto para o seu irmão e Vigário de Ipu, Monsenhor Morais, e esse abrir-me-ia as portas do Seminário de Sobral, que ela considerava mais adequado para mim. Pouco tempo depois, recebemos a notícia de que o Monsenhor Morais havia conseguido a vaga.

Vi-me diante de duas propostas concretas e tinha que optar. Fui conversar com Dom Fragoso e escolhi viver a experiência iniciante. Acho que minha decisão fez germinar um certo desconforto no coração do Cura do Ipu. Quis Deus que nos seus últimos agostos de vida nos aproximássemos, nascendo daí uma recíproca admiração e uma fraterna amizade.

Em 1981, precisamente na noite de 30 de março, iniciei com outros quatro colegas aquela inovadora experiência vocacional. Naquela inolvidável noite fomos abençoados por Dom Aloísio Lorscheider; Dom Fragoso, com sua firmeza de aço, dizia com convicção vinda da alma que aquela experiência abriria caminho em termos de formação vocacional; Padre Alfredinho, cheio de infância, originalidade missionária e alegria evangélica, batizava o grupo de “Fraternidade Nova” e nos convidava a ser, como Francisco de Assis, “Loucos pelo Evangelho”; nossos pais, comovidos, contritamente felizes, nos entregavam à Comunidade presente.

Após a detida leitura deste livro essas doces e amabilíssimas memórias irrompem e se esparramam, qual cachoeira tranquila, na serra e na várzea da minha alma.

Este grande caderno de mensagens airosas me transporta para uma época inesquecível, plena de bons faróis referenciais.

Como os fastos – livros que, entre os Romanos, registravam fatos memoráveis - estamos diante de um compêndio memorial lavrado em um invisível tabernáculo portátil, sob o bálsamo da poesia. E aqui reside sua distinção. Como bem pontuou Pablo Neruda, “as memórias do memorialista não são as memórias do poeta. Aquele (o memorialista) viveu talvez menos, mas fotografou muito mais, recreando-nos com a perfeição dos pormenores. Este (o poeta) entrega-nos uma galeria de fantasmas sacudidos pelo fogo e pela sombra da sua época”.

Este álbum de memórias poéticas passeia pela história brasileira desde a República Velha, visita a Igreja Católica, notadamente no Ceará, para desenhar o tronco do qual se originou a Diocese de Crateús e, sobretudo, para remeter ao platô da dignidade o seu primevo pastor: Dom Antonio Batista Fragoso. (Jamais olvidarei sua silhueta severa e simples: a metálica voz, o andar inconfundível, o olhar cortante, a firmeza de aço na defesa dos ideais, a verdejante convicção brotando da alma árida de sertanejo. Era, flagrantemente, um Profeta, que se fez fogueira de sabiá sob as nuvens frias das noites trevosas...)

A antífona de entrada dessa empreitada de louvor teve lugar às margens da artéria vital da formosa Paris, o rio Sena, e se estendeu por outros espaços do planeta com os quais o homenageado teve relação: desceu aos subterrâneos de Roma para visitar as mais antigas e impressionantes catacumbas romanas, as Catacumbas de Domitila, local em que Dom Fragoso foi signatário do famoso Pacto das Catacumbas, “um dos momentos mais belos da história da Igreja Católica”; recebeu a benção silenciosa de Dom Thomaz Balduíno, bispo emérito de Goiás; sentiu o abraço de ternura e grande amizade do eterno pastor de São Félix do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga; subiu às alturas peruanas de Macchu Picchu para, como o poeta, ‘mergulhar a mão no mais genital do terrestre’, e, em Lima, revisitar a memória do protetor dos índios, Bartolomeu de Las Casas, e conhecer o patriarca da Teologia da Libertação, Frei Gustavo Gutierrez; e, por fim, como um viajante imóvel, realizou uma romaria literária pelos principais expoentes desse modelo teológico de leitura do evangelho sob a ótica dos mais sofridos. Foi uma missionária peregrinação, de exigente respiração e prazerosa inspiração.

Não raro a carruagem da História suscita um fenômeno paradoxal: quanto mais nos distanciamos da paisagem dos fatos que vivenciamos, mais nítidos se tornam os seus detalhes, as distinções sutis, as variações essenciais.

Durante muitos anos os Crateuenses se dividiram entre apoiadores de Dom Fragoso e defensores do Padre Bonfim. Estas páginas, com sabedoria salomônica e humildade evangélica, removem a cor baça dessa rivalidade e nos devolvem à harmonia fundada no respeito entre diferentes, realizando uma imprescindível sublimação.

Particularmente, me impulsionaram para um reencontro íntimo com quatro seres especiais, quatro homens virtuosos, quatro colunas de sustentação, meu particular ‘quadrivium’, cruzamento e articulação de ramos ou caminhos fundamentais na minha formação pessoal: de um lado, Dom Fragoso e Padre Alfredinho; do outro, meus parentes Monsenhores, Bonfim e Moraes. Em vida, sob a combustão das convicções que os abastecia, percorreram trilhas distintas, em que pese realizarem a mesma busca terrena pelo Reino de Deus.

José Maria Bonfim Morais e seu primo Zacharias Bezerra Oliveira dedilham os fonemas deste livro como quem acaricia uma coroa de rosas, como quem se posta genuflexo, usando as vestes sagradas da serena alegria, diante de um altar: sob o incenso da poesia e com sabedoria oracular!

Esta escritura, cunhada em pergaminho sacro, há que ser apalpada com mãos cerimoniosas.

Antes de ser lida, com silenciosa reverência, há que ser contemplada sob a solenidade essencial dos monastérios. É uma missa completa! Namastê!


(Júnior Bonfim, na apresentação do livro Dom Fragoso - O Profeta do Inobtido)