terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A PROPÓSITO DO CENTENÁRIO



Os ensaios reflexivos alinhavados sob este provocativo nome de Crônica da Cidade - pergaminho confeccionado com matéria prima exclusivamente extraída da mata ciliar do Poty – são antes de tudo uma profissão de fé neste rincão que me brindou com a luz da vida.


É óbvio que essa ligação radical ou apego de raiz está longe de ser um fascínio ingênuo. É, sem embargo, produto de combativa esperança, nos moldes do Fado Tropical, que Chico Buarque e Ruy Guerra compuseram: Oh, musa do meu fado/ Oh, minha mãe gentil/ Te deixo consternado/ No primeiro abril/ Mas não sê tão ingrata/ Não esquece quem te amou/ E em tua densa mata/ Se perdeu e se encontrou/ Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal...


Creio que o nosso Crateús ainda cumprirá o itinerário de sonhos e ideais que seus filhos alimentam. Creio na florada de uma safra de união e empreendedorismo. Creio na felicitação da justiça. Creio que ainda participaremos de um concílio de paz afetiva e prosperidade efetiva.


No entanto, de par em par com as estrofes lúdicas dos desejos em profusão, se ergue um malho de inquietações, típicas de quem emocionalmente está envolvido com o que ama. Lembro-me do Nobel José Saramago, escriba superior e cidadão pleno, que fez do seu ofício uma cítara em que propagava a música da liberdade. Contemplando sua pátria, a heráldica Portugal, desabafou: “Este país preocupa-me, este país dói-me. E aflige-me a apatia, aflige-me a indiferença, aflige-me o egoísmo profundo em que esta sociedade vive. De vez em quando, como somos um povo de fogos de palha, ardemos muito, mas queimamos depressa...”


Guardadas as indispensáveis proporções, em nossa pequena pátria de afeto a mesma pedra de angústia rola pelo caminho. O acirramento dos embates políticos embrutece as relações, dinamita a pujança dos sonhos, fragiliza as retinas futuristas. Impera, pela lente de Saramago, o egoísmo, aqui entendido como a insuflação do ego, o enredamento das atitudes em torno do próprio umbigo. Espelho dessa alma coletiva abalada pelos choques menores é a questão do centenário da cidade.


Datas há em que as pessoas, a despeito de quaisquer querelas ou contendas, são capazes de se reunir em torno de uma mesa comum, acender a vela comemorativa e partilhar o bolo preparado para o ato. Isso ocorre, geralmente, pela importância de quem será homenageado.


Este ano realizaremos a nossa celebração centenária. Pela magnitude da efeméride, era o momento de se ter uma pausa nas pugnas de interesses pessoais e grupais. Porém, há pelo menos três grupos distintos elaborando programações diferenciadas para homenagear o mesmo ente. De um lado, o poder oficial; do outro, segmentos independentes da sociedade. Cada um aspira faturar e evitar que o outro se beneficie, sobretudo politicamente, da festa. Cada um quer ganhar. Ninguém quer “perder”. Aqui, cabe verberarmos como enfaticamente o fez Cícero ao lamentar o estado decadencial da quadra em que vivia: Oh tempos! Oh costumes!


Quando será que teremos a grandeza de sentar civilizadamente ao redor do banquete em honra ao natalício da nossa urbe, sem o zumbido do preconceito servil ou do estigma autoritário, sem a tibieza da cooptação política ou o temor da contaminação ideológica, sem o fantasma do egoísmo partidário ou o vírus do estrelato politiqueiro? Quando? Quando?!


Precisamos abrir um espaço em nossos corações e fazer um gesto à grandeza. Gestar uma comemoração centenária que respeite a diversidade pulsante e a pluralidade pensante. Uma celebração que erga, à vista de todos, o pão produzido com o fermento da divergência e o vinho da elementar convergência.


Em respeito à cidade que amamos, façamos a festa do centenário com espírito libertário. Libertário é o espírito que busca a liberdade para todos, mas que também liberta a si mesmo, cultuando o desapego. Desapego que se traduz no destemor em sofrer uma possível perda, lembrando o que proclamou John Lennon: “Amo a liberdade, por isso deixo as coisas que amo livres. Se elas voltarem é porque as conquistei. Se não voltarem é porque nunca as possuí”.


(Por Júnior Bonfim – na edição de hoje do Jornal Gazeta do Centro Oeste, Crateús, Ceará)

Nenhum comentário: