sexta-feira, 23 de março de 2012

A PESCA


Os contadores de historias – alguns até diplomados pela SABI-Crateús e respaldados pela exímia instrutora e consagrada atriz Karla Kafka – dizem que quem conta um conto...aumenta um ponto!

Fui frequentador amiúde, até recentemente, de uma Bodega em cuja porta principal havia uma placa com os dizeres: CONVÍVIO PARA CAÇADORES, PESCADORES, CONTADORES DE HISTORIAS, POETAS E OUTROS MENTIROSOS. Foi lá que colhi incríveis ficções, todas recheadas de espetaculosas fábulas, felizmente não desenvolvi este terrível hábito de faltar com a verdade.

Passei a entender essa despudorada habilidade examinando alguns pescadores e sei que não existe essa de mentir pouco ou mentir muito, quem mente mente, é uma consequência patológica heteronímica de Pessoa, o poeta, que diz que o principiante mentiroso logo se converterá num profissional da lorota. Mesmo assim sinto-me bastante inseguro, pois o grande filósoso Sócrates, se não me falha a memória, uma vez falou: Quem mais conhece a verdade é quem mais é capaz de mentir. Eita, me vem mais este increspo, já daquela época.

Ora, se até uma complexa teoria científica respaldada pelos cabelos grisalhos do bioquimico Oparin, afirmando peremptóriamente que todas as formas de vida que perambulam por aí, descendem diretamente de uma molécula primordial que, de uma hora para outra, resolveu sair pulando das águas lodosas de um rio, fazendo com que este inconsequente biologo russo perdesse o direito de caminhar livremente pelas ruas da sua própria cidade, ao apresentar-se com um ar todo darwiniano a medida que sua lorota ia ganhando autoridade.

Ora, ora... muitas vezes eu vi, com esses dois olhos lamurientos, sairem das águas serenas do Poço da Roça no intermitente Poti, uns acanhados reptéis, umas lúbricas sereias que lavavam roupa nas pedras baixas, uns mirrados piaus, algumas dentuças traíras ou um roliço cangati ovado sendo puxado pelo anzol de um paciente pescador e nada mais. Mas acho que tenho o direito de coibir esse tal de Oparin especular sobre a origem da vida.

Quem teve a felicidade de encantar-se nas margens do Poti, aprendendo com as graciosas garças, com os pacientes socós a fina arte da pescaria, passa a entender o porquê da água ser a origem da vida e é o princípio de todas as coisas, sem precisar de nenhuma teoria.

Somente quando percebemos que um poço tem seus caprichos e um rio transporta um mundo de fantasias é que revelamos as habilidades peculiares de grande arremessador de tarrafa. Como o Martin Pescador, do poeta pantaneiro Manoel de Barros, “quando, de repente, do alto da água, arregaça o cuzinho e solta sua isca de guspe. Peixe vai ver o que foi aquele guspe: antepara! De veloz arrojo Martim-pescador frecha na água, e num átimo sobe – O peixe atravessado no bico! As águas remansam e rezam. Esse martim-pescador é fela.”

Um povoamento que começou com uma denominação de peixe, Piranhas, é para ser mesmo bem desenvolvido na arte da pesca. Naturalmente, pelo seu imenso rio, a espinha dorsal da região, que desce da Serra da Joaninha como um fiozinho d'água e cresce impetuoso e rouco, um Itaimanssu que vai se revestindo no serpenteado Poti, sedento, a ingerir as águas dos inúmeros riachos, mas vai deixando, aqui e acolá, alguns poços repletos de peixes pelo sertão ou se desenvolvendo artificialmente, pelos inúmeros criatórios de piscicultura que se propalam pelos açudes da região.

Quando o açude da Água Branca foi abastecido com milhares e milhares de alevinos de tambaquis, um escamoso e arredondado peixe da Amazônia que adora comer frutas, rapidamente a semente transformou-se em fruto maduro e a partir daí foi uma festa para os pescadores. Uma linha grossa, de meio milímetro, equipada com um anzol do tamanho de um dedo médio era o suficiente para fisgá-lo. A goiaba partida ao meio era um petisco para o colossal pacu vermelho. Mas algo estava errado, todos com a mesma linha, o mesmo anzol, a mesma isca e somente Seu Felício, o filho do Compadre Caboclo, conseguia apanhar o peixe do tamanho de um bode e arrastá-lo para fora d’água. Alguém, sorrateiramente, se aproxima do felizardo pescador, descobre seu segredo e sai alardeando: – O Felício está é para morrer de fome, morde a metade da goiaba e coloca o resto como isca. Os outros pescadores matam a charada, observam que a faca que usavam ia deixando um azinhavre na fruta e o peixe a rejeitava. Em pouco tempo estavam todos comendo goiabas e pegando tambaquis a vontade.

Ali, por perto, havia outro convidativo açude, também semeado de peixes em abundância: tilápias, carpas, tambaqui, afora a gostosa curimatã de meio quilo cada, um lugar adequado para se pescar. O problema era que o dono sempre vigiava, madrugada adentro, numa oscilante canoa ancorada bem no meio do açude, equipado com colchonete de dormir, uma boa lanterna e um potente papo-amarelo do lado, quem se atreveria a ir pecar! O Fanhanhã foi!

Um exímio pescador, conhecedor de todos os mistérios da pesca. Aprendera com o paciente Socó-boi e o preciso Martim-pescador, dizem até que era filho de Ártemis, a deusa da caça e da pesca, e que era bem afeiçoado de São Pedro, o protetor dos pescadores.

A água do açude estava fria e serena por àquelas horas da madrugada, e como um aquático quelônio vagarosamente, sem muita pressa, para não perturbar a paz do ambiente, desliza sobre a superfície distribuindo dezenas de metros de fio de náilon em rede de pescar. Um pescador vive grande parte de seus dias numa individual solidão aprendendo a esperar e a melhor hora de pescar é do pôr-do-sol ao amanhecer, nem tão cedo que não haja luz bastante para a transparência da água nem tão tarde que a viração do dia abale a serenidade do aquático santuário. A despesca de um galão deve ser feita na tranquilidade do lar tomando um gostoso cafezinho quente, tendo a visão exata do que se pescou. O finório pescador ainda deixou uma mediana tilápia dentro da canoa, para o desenjum do raivoso papo-amarelo.

Agora vocês me dão licença, já chaga de tanta lorota por hoje que eu que vou colocar a minhoca n’água, na beira do rio Poti, pois toda pesca também se assemelha à poesia e como o fanfarrão Fanhanhã, também nasci pescador.

Raimundo Candido

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