quarta-feira, 24 de abril de 2019

DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA FORTALEZENSE DE LETRAS



Dignidades que ornam a mesa,
Damas que aformoseiam,
Cavalheiros que abrilhantam
E mocidade que empresta mais fulgência às lâmpadas deste Palácio de Luz:
Meu cordial boa noite!



Impulsionado pela deferência da indicação para, em meu nome próprio e de três férreas e finas fêmeas, articular as sílabas de gratidão, sinto simultaneamente o latejar estrelado da honra e a inquietante fagulha metálica do assombro feito desafio.

(Suponho ser esta a vez inaugural em que profiro uma oração acadêmica na solitária e afortunada condição de bendito entre mulheres...).

Principio homenageando a cálida Casa que nos acolhe em nome daquele que a representa ativa e passivamente, o seu Presidente Seridião Correia Montenegro! Fraterno amigo, bondoso companheiro, Seridião alcançou o Tibet da montanhosa cadeia existencial após uma portentosa senda de imersão axiológica e inversão cronológica. Além de se ressintonizar com os valores duradouros que são, para o mundo, pilastras de sustentação, o atual comandante desta Arcádia experiencia o milagre da permanente renovação. Saulo Ramos, o renomado jurista que, nos píncaros da maturidade, virou romancista e poeta, confidenciou: “Sempre que escrevo um poema tenho menos de vinte anos. Não importa minha idade. Tenho menos de vinte anos quando a poesia me desassossega”. O que ocorre com Seridião não é muito diferente: eis um varão maduro e decente que a literatura tornou adolescente.

Mais do que um preceito de regência, tornou-se um dispositivo pétreo nos grêmios que evocam o sítio de Akademus e, sob o mesmo arrimo histórico, as pilastras regimentais da Academia de Richelieu – que, aprovado o ingresso, os recipiendários balbuciem notas básicas de auto apresentação e, sobremaneira, referenciem o assento patronal que ocuparão.

Por isso, como um modesto puxador de bateria, retiro o chapéu invisível e estendo a mão para saudar as divas da noite, todas detentoras da notoriedade curricular. Adianto que optei pelo ritual da brevidade, tão cultuado nos dias atuais, bem como as mencionarei em ordem alfabética, porque indistintamente exibem igual ordem de relevância.

A primeira é oriunda de um dos mais belos espaços da nossa sedutora geografia, cujo corpo resta dotado de voluptuosos seios de pedras que chamamos de monólitos. Ela ainda engatinhava pelas babugens redacionais quando, em Quixadá, recebeu de Rachel de Queiroz o óleo batismal para brindar o planeta com a arte de coser as linhas da língua, ornamentar os causos e nomear as cousas – não sem antes receber a admoestação de que deveria priorizar as falas e os costumes do ambiente nativo. Proprietária da editora Sol Literário, tem o magistério como estuário. A consultoria é um dos seus pilares, além dos projetos que toca no Colégio Antares. Para ela foi reservada a cadeira de número 04, que tem como patrono o médico mítico, historiador que fez história, libertador e militante abolicionista, Guilherme Chambly Studart, o Barão de Studart. Anuncio que sucederá a Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos no quarto assento desta Casa a professora, poetisa e romancista Angélica Cecília Freire Sampaio de Almeida.

A segunda é um presente que ganhamos da terra de Genuíno Sales. Nascida na bela Teresina, a Cidade Verde, também conhecida como Mesopotâmia Brasileira (porque banhada por dois rios: o Poty e o Parnaíba), ela exibe diploma de mestrado educacional e sentimental. Como os lençóis freáticos de seu estado natal, ela carrega nos subterrâneos da alma um aquífero copioso, uma fonte termal de envolvente ternura. Missionária da inclusão social, hasteia diariamente a bandeira da acessibilidade, abrindo mentes e dobrando corações para que tenhamos um aumento da produção livresca em braile. Partiu dela a ideia de que esta festa fosse animada pelo Antoniel Batista e equipe, que, a despeito de problemas oculares, se revelam brilhantes artistas. Premiada aqui e alhures, essa mulher de espírito musical vai cuidar da poltrona que tem como patrono o compositor, pianista, organista e professor Alberto Nepomuceno. Para suceder a escritora e poetisa Rita de Cássia Araújo na cadeira 02, apregoo que a Academia Fortalezense de Letras disporá do talento e da genialidade de Elinalva Alves de Oliveira.


Proclamo, com eco em todas as Colunas deste Edifício, que a terceira empossada nasceu sob a brisa de Iracema e sempre esteve destinada à ribalta. Sabemos que, conforme a lição sagrada, a candeia não pode ser posta debaixo do alqueire. A luminosidade desta dama está na fronte e tem como fonte uma secreta palma que brota do sacrário d’alma! Carrega em si a solenidade da simplicidade. Esbanja a fidalguia da singular alegria. Há poucos dias, neste mesmo salão, teve celebrada a sua triunfal entrada na mais alta Casa de Letras estadual. Ariana, combina alento e movimento. Tem o espírito pascal: seu foco é sempre o essencial. Por isso, apraz-nos acompanhar, com indisfarçável fascínio e fulgor admirativo, cada nível que ela sobe no podium das olímpicas conquistas. Ela vai lustrar a poltrona auspiciada por um vanguardista em planos e posturas que revolucionaram a atmosfera Alencarina, o Senador Pompeu, e que estava, até bem pouco, sob a guarda do médico, orador, escritor e cantor Maurício Benevides. Doravante zelará pela cadeira 39 a doutora Grecianny Carvalho Cordeiro.

Quanto a mim, catecúmeno que aprecia o ritual da poesia, gerado à sombra de uma frondosa oiticica na ribeira do Poty, posso lhes adiantar que fio minha vital fantasia sob três efes: o forense (abracei a profissão de Santo Ivo), o familiar e o filantrópico-literário. Minha carreira de vida, ou curriculum vitae, é germinação de jitirana, cultivo terreno de básicas crenças celestes como a do efeito invisível do fermento no alimento e na mão do Onipotente conduzindo a vida da gente. Minha rotina se concentra em acariciar a aurora com o ósculo da gratidão, pois tudo que em nós se faz verso é mimo do universo; estender as mãos e dilatar a ternura para o lócus afetivo primeiro, que é essa interativa ilha chamada família; manter acesa, e com fidelidade, a fogueira da amizade; adentrar nos fóruns aquecidos pelo sol do nosso sertão e nos tribunais bafejados pela brisa do litoral com alegria e paixão; laborar pela geral felicitação, a partir da compreensão de que uma existência digna e saudável há de ser um bem colocado em comunhão. E aqui, na cadeira 12, farei uma dúzia de esforços para lapidar minha rima sob os auspícios do maiúsculo poeta e educador Filgueiras Lima. Ele, que lecionava com a solenidade litúrgica de quem rezava, certamente me estenderá a mão no cumprimento dessa missão. Com o apoio do saudoso Genuíno Francisco Sales, meu dileto antecessor, farei desta empreitada um ofício de amor!

Academia Fortalezense de Letras! Passamos hoje pelo teu imperceptível túnel de espadas e pisamos o tablado do teu dispositivo reverencioso para receber a unção de luz e celebrar a renovação dos votos sacramentais de culto ao idioma!

Adentrar no teu Pórtico, no entanto, reclama mais. Muito mais! Exige que esse consórcio afetivo se estenda à cidade que representas, a Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção!

Mulher híbrida, águia bicéfala, ora se nos apresenta como uma arrebatadora morena, uma virgem com lábios de mel; ora nos sacode com o desfilar deslumbrante de uma loira desposada do sol. Fortaleza revira-se na cama dos desejos ansiando por impulsos vitais, como que a implorar um solavanco inédito, como que a almejar a inauguração de um tempo de realização de intuitos nunca dantes imaginados.

Ao sermos admitidos nas colunas desta Confraria e nos dispormos a decifrar os hieróglifos do presente, não podemos descurar do solo em que pisamos, uma urbe de punho e pujança, de velas e ventos, de aldeota e varjota, de verdes mares e escuros esgotos, de coco e cocó, de jardim das oliveiras e vila união, de conjunto esperança e praia do futuro...

E aqui, para não abusar da vossa generosa paciência, ousamos compartilhar uma ponderação derradeira, que imaginamos ser comum a todos os que caminham pela orla do tempo mirando o oceano das humanas possibilidades.

No escuro da noite ou no clarão do dia, estamos sob uma travessia. A indagação que se agiganta parece simplória: o que está na raiz dessa inquietude civilizatória?! Qual o motivo dessa turbulência conceitual, dessa confusão de papéis que soa irracional?!

Na raiz de todo esse embaçamento, que a cada dia se agrava, está a nossa relação com a Palavra...

E o que nos dizem os mais qualificados guardiões do verbo, aqueles por cuja verve o oráculo ferve?! Revelam que a palavra é poder fundante, manancial fecundante, pia que tudo cria, inalcançável monte, inesgotável fonte!

Ai, Palavra! Oh, Palavra, como és açoitada, ultrajada, banalizada, vilipendiada...

O maior desafio às gerações atuais não é senão te retirar da sala dos passos perdidos em que te lançaram e reconduzir, como merecimento albergado, ao teu altar sagrado!

Deveríamos ter, em nosso músculo de articulação fonética, uma balança e uma fita métrica, a fim de realizarmos um filtro prévio dos nossos esperneios verbais. Porque os vocábulos, mademoiselles e varões, os vocábulos têm pesos e dimensões. Não deveríamos deles lançar mão sem o experimento antecedente da valoração. A lâmina do insulto, o petardo da injúria, o torpedo da calúnia, a explosão difamatória e tantas outras violações ao sacrário da intimidade alheia poderiam ser evitadas se antes de proferirmos os veredictos maledicentes os submetêssemos às peneiras Socráticas...

Sobretudo, deveríamos optar pelo uso frequente da palavra em sua forma de brasa mais ardente: a não palavra, aquela que produz o barulho mais estrepitoso, o silêncio cerimonioso.

Não desistamos da tranquila alegria. Vivemos sob uma aragem que prenuncia uma catarse. Atinge-nos uma rajada de purgação. Pisaremos a plataforma da libertação!

Se entre nós estivesse, Carlos Drummond de Andrade certamente diria, com seu moderado elã, que lutar com palavras é a luta mais sã.

Eis que, sob o candeeiro dessa prédica, nossa prática condoreira, além da virtude guerreira, ganha também vestimenta alvissareira. Por ela, descobrimos o mais atual excerto: o mundo tem conserto! É através da lavoura da palavra, em especial do seu semear mais profundo, que poderemos realizar a assepsia do mundo!

Aqui chegamos, irmãs e irmãos dessa agremiação literária com cheiro de mar e plena de luz solar, para simplesmente somar. Cada um de nós traz nas mãos um punhado de húmus, em seu duplo significado latino de terra e humildade. Vimos para jurar o exercício do sagrado ofício de todo ser que se dedica a cunhar éditos, doirar pergaminhos, fiar missivas e esculpir escaninhos: cumprir a tríade criar, caminhar e cantar!

Criar. Ao semeador da palavra cabe a humana tarefa de animar os semelhantes no labor onírico da criação. Todos somos convidados a pertencer ao que é fecundo e germinal: à vontade de nascer – das sementes; à teoria silenciosa – das noites; à fúria juvenil – dos ventos; à claridade derramada – das manhãs; à floração colorida – das primaveras!

Caminhar. O magistério dos mestres do Oriente nos legou que o Caminho, ou o Tao, é o principal, o essencial. “Se você conhece o Caminho, conhece o objetivo, pois o objetivo não está no final do percurso, mas ao longo de todo o Caminho; a cada momento e a cada passo ele está presente”. (Osho)

Cantar. Cantar é fazer a alma bailar. Como leciona a sabedoria popular: devemos cantar para os males espantar. A canção traz em si o gérmen da verdadeira emancipação. Cantar atrai calma, engrandece a alma! – segundo nos revelou a Mãe do Mestre.

Criar, caminhar e cantar resume a trajetória do escritor perante a História.

Criemos, caminhemos, cantemos!
Pois para isto nascemos!


Gracias!
Merci!
Thank you!
Obrigado!

(Júnior Bonfim, na noite de 23 de abril de 2019, no Palácio da Luz, Fortaleza, Ceará)

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