segunda-feira, 13 de abril de 2009

FEITO CARTÃO POSTAL





"Não cremos apenas que o tempo, futuro ou passado, destina-se à visão. Essa crença reafirma nossa convicção de que é possível ver o invisível, que o visível está povoado de invisíveis a ver e que, vidente, é aquele que enxerga no visível sinais invisíveis aos nossos olhos profanos" (Marilena Chauí, no texto Janela da alma, espelho do mundo - livro O Olhar, 1988)


O convite me foi tentador. ENXERGAR a cidade e interagir com seus personagens, tantos quantos fossem possíveis espalhar pelas páginas seguintes. Esmiuçar sujeitos e lugares que pudessem traduzir Fortaleza através da Visão - aquela que um dia Santo Agostinho adjetivou como "o mais espiritual dos sentidos". E como não voltar a escrever sobre ela? Como não voltar a traduzir em palavras e tentar provocar no leitor o espírito do flaneur? Como dizer não a uma aniversariante de 283 anos - guardadas as devidas polêmicas em torno de seu nascimento? Convite aceito.

Materializar essa idéia e abarcar a cidade com os "olhos de ver" da socióloga Lídia Pimentel foi muito prazeroso. Como o foi ter com seu Moreira, o porteiro que fez de seu bairro um pedacinho de Baturité; e ouvir o publicitário Celso Nóbrega falar com tanta propriedade sobre a cidade em que ele reside há 23 anos, sem nunca a ter visto. Foi enriquecedor ouvir o cantor Falcão apontar as "duas Fortalezas"; e saber que o escritor e compositor Augusto Pontes também gosta de flanar por Fortaleza, "uma cidade plana, com ruas estreitas que, de repente, se abrem para um espaço amplo que é uma coisa desconcertantemente linda". O mar do fortalezense é desconcertantemente lindo, resume o poeta.

Augusto Pontes tem 73 anos. Mas poderia ter a minha idade. Poderia ter a sua, que me lê. Ele diz que se confunde com a cidade, integra-se a ela porque vive muito na rua. "Em casa, eu durmo", faz graça. Augusto diz que "a gente está muito apressado, não olha para algumas coisas". De certo, "a gente" é boa parte de todos nós que habitamos Fortaleza.

Enxergue a cidade com o olhar puro e curioso de uma criança, despretensioso e amplo de um flaneur. Tente captar as coisas como elas são. Permita-se. Assuma o "olhar do estrangeiro" do filósofo Nelson Brissac Peixoto: "Ele é capaz de olhar as coisas como se fosse pela primeira vez e de viver histórias originais".

No livro O Olhar, organizado por Adauto Novaes, Brissac faz uma leitura atemporal desse olhar do estrangeiro. "Todo um programa se delineia aí: livrar a paisagem da representação que se faz dela, retratar sem pensar em nada já visto antes. Contar histórias simples, respeitando os detalhes, deixando as coisas aparecerem como são". Esse é o espírito: ir além dos cartões postais. Porque, se você olhar bem, existem outros tantos. Cartões postais vivos. E porque há muito ainda pra ver da gente de Fortaleza. E do olhar que cada habitante da cidade tem sobre ela.

A cidade tem pressa. "A cidade provoca, para aquele que avança num veículo, um achatamento da paisagem. Quanto mais rápido o movimento, menos profundidade as coisas têm, mais chapadas ficam, como se estivessem contra um muro, contra uma tela", pontua ainda o filósofo Nelson Brissac, na mesma obra construída a tantas mãos e que se debruça sobre ele, o olhar.

Atrase o seu relógio. Ao mesmo tempo, aproprie-se da devoção que Aristóteles tinha pelo "prazer das sensações", mais apaixonadamente pela visão. "Ainda quando não nos propomos a nenhuma ação, preferimos a vista a todo o resto. A causa disto é que a vista é, de todos os nossos sentidos, aquele que nos faz adquirir mais conhecimentos e que nos faz descobrir mais diferenças", escreveu o filósofo, na abertura da Metafísica. Ou abra a "janela do corpo" como fazia Leonardo da Vinci. Perceba a constatação dele como se fosse um convite:

- Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? (...) É janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo.

Especule o que a aniversariante tem para lhe mostrar. Abarque-a com as suas janelas da alma.

(Raquel Chaves - Especial para O POVO)

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