terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

AS RUAS


Mês passado encontrei, próximo ao oceano, um sertanejo e marítimo amigo, o alado gravurista maior do Ceará, o iluminado e vibrante poeta de telas Francisco de Almeida, o Almeidinha. Naquela abrasada tarde de sábado, me disse: “JB, leio suas crônicas no Jornal Gazeta. Acho que você podia escrever sobre as ruas da nossa cidade, sobretudo aqueles locais que despertam paixões, nos convidam a olhar a lua e aproximam mais ainda os corações enamorados”.

Percebi que a ave da razão havia pousado em sua alma. Então, meditei: por que essa resistência em exaltar os pontos telúricos, as fontes de idílios, os espaços poéticos que despertam o brilho da paixão?

O cronista Paulo Barreto, que se revelou para a literatura sob o pseudônimo de João do Rio e viveu no Rio de Janeiro do inicio do século passado, escreveu um livro fascinante intitulado a “A Alma Encantadora das Ruas”. Nele, João do Rio compõe, em formato de Crônica, um maravilhoso poema de psicologia urbana, um passeio comovente sobre as artérias da capital carioca. Manuseando ritimadamente a caneta como quem passa dedos musicais sobre a cítara, ele entoa:

“Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia – o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia. Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua”.

Mais à frente, ele arremata em verdadeiro estado de arrebatamento: “Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!” (...) “A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento”.

Sempre gostei de caminhar solitário pelas vias ou veias onde corre o sangue vital da nossa urbe. Cada trilha urbana lembra uma determinada faceta da vida pulsante, um punhado de areia da história ou um pedaço de sonho peculiar.

Quando alguém cita as Ruas Moreira da Rocha e D. Pedro II logo associamos ao frenesi comercial.

Como caminhar pela Francisco Sá sem olhar para os trilhos e para a Estação, que nos fazem recordar o épico passado ferroviário que experimentamos?

Quem passeia pelo espaço mais amplo da Rua Zacarias Carlos de Melo sem fazer uma reflexão sobre a Igreja de São Vicente de Paulo e a comunidade Vicentina?

É difícil se falar em Rua Poty sem que a esta peroração estejam associados o Rio que beija a cidade e as festas promovidas nas casas dançantes de Zé Mendes e Louro da Cruz?

Como as pessoas, que recebem apelidos ou carinhosas designações particulares, as ruas também vivem a experiência de serem renomeadas. A Rua Frei Vidal da Penha, onde vivi meus anos infanto-juvenis, é popularmente conhecida como “Rua da Cruz”. Porque, em tempos idos, um fervoroso missionário ali fincou um enorme “Cruzeiro”. O nome do missionário? Frei Vidal de Frescarolo, vigário do Convento da Penha, em Recife, que se notabilizou como Frei Vidal da Penha.

É, as ruas têm corpo, exibem uma copa, externam um clamor, entoam um cântico, exalam carinho, apontam um caminho.

Essa atmosfera marmocenta que contamina a cidade de Crateús hoje, possivelmente tenha sua raiz no estado das nossas ruas, que estão cheias de hematomas. Quando vejo esse movimento pelo reasfaltamento – inclusive foi tema de um duelo musical no período momino – fico a lamentar, pois sabemos que esta não é a melhor solução para uma cidade quente como a nossa. Asfalto aumenta o calor. No outro extremo, igualmente condenável, é esse amontoado irregular de pedra tosca lançado na maioria das artérias. O ideal seria uma caprichosa pavimentação à base de paralelepípedo, que embeleza sem elevar a temperatura. Se vivêssemos num ambiente de distensão política, poderia ser promovida uma ampla discussão com a população municiando-a com dados técnicos para uma decisão mais consistente. À míngua de maiores informações, o povo protesta por asfalto. É o resultado dessa combinação perigosa da irracionalidade ideológica com a parcialidade política.

Enquanto mergulhamos nessas estéreis contendas, deixamos de lado o mais importante: aproveitar o tempo para apreciar a alma encantadora das ruas!

(Por Júnior Bonfim - no Jornal Gazeta do Centro-Oeste - Crateús - Ceará)

Um comentário:

Paulo Nazareno disse...

JB,como adorno,recomendo a bela canção: "A Deusa da minha rua".Tem uma ótima interpretação e um arranjo de violão excelente na trilha sonora do filme Florisbela e o Prisioneiro;vale a pena ouvi-la.