“A palavra foi dada ao homem para dissimular seu pensamento”. Este lembrete de Charles Talleyrand-Périgord, matreiro político da era napoleônica, se faz muito presente no circuito político e, com mais intensidade, nos ciclos eleitorais. Querem um exemplo? “Não basta o novo nesta cidade. É preciso um programa novo”.
A senadora Marta Suplicy, na outorga do titulo de cidadão paulistano ao ex-presidente Luiz Inácio, semana passada, dizia à plateia que não adianta um candidato exibir sua estética jovem na campanha eleitoral se não portar, a tiracolo, um programa que reflita, de maneira competente, soluções para os graves problemas de uma metrópole.
Traduzindo o que a ex-prefeita do PT quis expressar: Fernando Haddad, candidato patrocinado por Lula, pode ter cara de meninão. Não será, porém, seu perfil que garantirá uma administração inovadora para São Paulo. Mais que isso, importa um plano “revolucionário”, capaz de contemplar as ingentes demandas da maior capital do país e adotar ações que resultem em mudanças e avanços.
O novo pode ser velho e o velho, ousando interpretar o pensamento da senadora, tem condições de vir a ser o condutor da locomotiva das mudanças. Marta, até então, detinha o maior índice de intenção de voto entre candidatos petistas à prefeitura. Referia-se a si mesma?
Sua intenção pode ter sido cutucar a cúpula petista. Mas não há como deixar de lhe dar razão. A campanha municipal no país ensaia os primeiros passos, com pré-candidatos atirando verbos uns contra outros, será certamente um exercício de fuga da realidade.
O conceito de novo inundará os palanques. Ladainhas, propostas mirabolantes e fórmulas mágicas comporão o discurso euforizante de candidatos às 5.565 prefeituras e às 57.748 vagas de vereadores. Desfilarão nas ruas diferentes tipos de candidatos, cada qual se esforçando para se diferenciar um do outro, pretendendo fixar a imagem do melhor, superlativo que puxará os qualificativos “preparado, experiente, inovador, conhecedor dos problemas, popular, sério, cumpridor de promessas”.
O PT emite sinais sobre a tônica de seu discurso. Recentes spots publicitários do partido, pela expressão do ex-presidente Lula e da presidente Dilma, mostram que o conceito-chave a ser usado na campanha será o da mudança, inovação.
O partido tem a intenção de colar nos candidatos o cenário das conquistas alcançadas no ciclo Lula, agora sob o manto do governo da primeira mulher presidente.
A estratégia, orientada pelo marketing político, deverá encontrar fortes barreiras, a partir da cultura dos grotões, que ainda se funda nos obséquios que Victor Nunes Leal descreveu no clássico Coronelismo, Enxada e Voto: arranjar ou prometer emprego, emprestar dinheiro, influenciar jurados, providenciar médico ou hospitalização, dar pousada e refeição, batizar filho e apadrinhar casamento, compor desavenças, proteger indicados na administração, enfim, uma infinidade de préstimos pessoais.
Portanto, o primeiro grupo de candidatos – nos 2.507 municípios de até 10 mil habitantes – se apresentará com o carimbo de despachantes de demandas pessoais. E o compromisso com a cartilha partidária? Ora, servirá apenas de passaporte de legitimidade.
Nas cidades de até 50 mil habitantes (2.449), cujas demandas nas frentes de serviços básicos são mais acentuadas – saúde, educação, transporte, habitação etc. – a tipologia será mais farta. Ver-se-ão perfis vestindo o figurino de obreiros sob o slogan “fulano fez, fulano faz.” Outros abrirão o cobertor do assistencialismo, usando a carona das bolsas da era Lula.
Populistas se esforçarão para acenar com gestos extravagantes e exibir as tradicionais mungangas: comer pastel na feira, tomar café na padaria, embalar crianças nos braços, visitar doentes, desfilar com o santo nos ombros na procissão religiosa. Aliás, nem os quadros de maior elevação cultural resistem às missas campais para 100 mil, 200 mil pessoas, celebradas por padres que habitam o Olimpo da cultura de massas. Faz parte da liturgia eleitoral.
Mas haverá sinais de mudança. Das comunidades médias, emergirão bons gestores saídos de profissões liberais -, principalmente médicos, advogados, agrônomos-, e também das áreas dos negócios, como comerciantes, empresários e proprietários rurais. Este núcleo geralmente conta com respaldo de entidades de intermediação social.
O foco discursivo abrigará demandas locais e imediatas e as ênfases obedecerão às especificidades de cada localidade.
Já nos ajuntamentos maiores – entre 50 mil até 100 mil e acima de 100 mil habitantes (609 municípios), a dispersão das mensagens tende a ser maior. O desafio dos contendores será o de criar uma identidade homogênea a todas as classes.
Os grandes centros poderão acolher a expressão bipolar – o novo contra o velho, o experiente contra o jejuno, a mudança contra o status quo, aposta do PT e do PSDB em São Paulo.
Mas o discurso ambivalente não será suficiente para formar duas alas, uma oposta à outra. Eis o ponto nevrálgico. No eleitorado paulistano de 8,5 milhões de pessoas, interesses se bifurcam, visões se aproximam, simpatia e antipatia se cruzam.
O fato é que o eleitor tornou-se mais crítico. Até pode continuar a eleger palhaços. Mas a figura do gaguinho prefeito se esvai na névoa do tempo.
Outubro de 1976. O candidato da Arena a prefeito de Palmares renuncia. O governador Moura Cavalcanti chega à cidade e pergunta: “quem é popular aqui?” Respondem: “o gaguinho”. Ante a informação de que “o gago não fala nada”, Moura fechou questão: “será ele”.
Levou-o ao palanque e anunciou: “prefeito não precisa falar, precisa agir.” O povo batia palmas. O gaguinho fazia apenas o V da vitória. Não disse um pio. Ganhou a eleição.
Um gaguinho, candidato de Lula, poderia levar a melhor no pleito de uma cidade pequena? É possível.
Mas a cáustica observação da senadora Marta tem lógica: o candidato pode ser jovem e gago, mas se não tiver programa novo, dança. Em tempo: não é o caso dos jovens candidatos em São Paulo.
(Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação)
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