sábado, 23 de junho de 2012

UTOPIA CABLOCA




Fazer amigos é um atributo indispensável a todo ser humano. É uma tendência própria que depende unicamente do caráter e do temperamento de cada um. Alguns já nascem com um manual embutido na pele e fazem amizades instintivamente, pela água, pela terra e pelo ar.

O Luiz Bonfim – um esclarecido e erudito cidadão de vida boa – pertence a essa espécie, e não passa muito tempo sem regar suas afeições e suas estimas, mesmo quando um companheiro querido já foi recompensado com o merecido descanso da fatigante faina terrestre. Veio da cidade de Fortaleza, com inoportuna urgência, prestar as últimas homenagens ao amigo e colega aposentado do Banco do Brasil, Francisco de Matos Melo, a quem chamavam de capelão, pela atenção e imensa cordialidade com que atendia às pessoas, indistintamente.

Nos momentos tristes de um funeral, em que se velam as últimas horas de um falecido com o pesar familiar e as cordiais despedidas dos amigos, uma melancolia desabrocha nas almas ali presentes, trazendo à tona as mais diversas recordações da vida que se transmutou em outra enigmática vida.

Acompanhávamos, na marcha penosa, o cortejo fúnebre relembrando o exemplar servidor que representava a figura emblemática do “Matos”, pensando que o País seria bem mais “Brasil” se houvessem muitos, como ele, empenhados com denodo, dentro das repartições públicas.

Um clarão nos surgiu rápido, quando passamos em frente ao Externato N. S de Fátima, na Frei Vidal, relembrando um inusitado encontro revestido de mistério, quando o profeta capuchinho Frei Vidal, o Pe. Juvêncio, o ilustríssimo Dom Fragoso e o bondoso Alfredinho vieram ao encontro deste propenso poeta para confabular e alertar sobre alguns sigilos, mas nada muito sobrenatural.

O séquito, após a encomenda do corpo na Igreja da Matriz, atravessa a Praça José Coriolano e desce o “Beco do Seu Raimundo Bezerra”, na Rua Carlos Rolim, rumo à última morada, o acolhedor cemitério São Miguel. O triste repique do sino, em despedida, me fez recordar um singelo verso de minha larva: “E na memória do Sino / plena em presságio, / cabem todas as almas / dos desvanecidos corpos.” Já ao pé do túmulo, alguém se pronúncia florejando os atos de um benfeitor e a confirmar a benquerença ao amigo que parte.

Em voz baixa, confidencio: – Amigo Luiz, este momento de despedida me lembra o discurso de Marcos Antonio no funeral de Júlio Cesar “Amigos, romanos, meus concidadãos, deem-me ouvidos. Vim para enterrar César, não para louvá-lo. O bem que se faz é enterrado com os nossos ossos, que seja assim com César.” O Luiz, um espírito perspicaz, já refletia sobre outra observação que lhe incidia sobre o olhar, perplexo:

– Raimundo, observe aonde o amigo Matos vai ser enterrado! É o túmulo do Luiz de Araujo Melo, o sogro, conhecido como Luiz Mano. E me testando, pergunta: – Você sabe quem foi ele?

Já tinha algumas referências sobre aquele crateuense que fora Diretor da Escola Técnica de Comércio e o orador oficial da primeira turma de contadores em 1948, época em que formatura, além de requerer uma grande festa, era um ritual de passagem para uma vida digna de trabalho e responsabilidades, familiar e social. Sabia que tinha sido um homem honrado e bondoso e que ajudava até os carreteiros do mercado, quando para estes, trabalho não havia. Soube que a sua morte, por um apêndice supurado, causou uma enorme comoção na cidade, abalo igual só na morte do Dr. Olavo Cardoso, pois eram cidadãos amados pelo povo.

O rejuvenescido Gravatinha, carinhosa alcunha do Bonfim, professoralmente continua na sua explanação sobre o Luiz Mano, um cidadão que Cratéus não podia e nem deve esquecer.

– Professor Raimundinho, fora essas informações que você já sabe, o Luiz Mano foi um ativo vereador de nossa cidade, numa época de UDNs, PSDs, curais eleitorais, votos comprados, políticos vendidos e outros vis crimes eleitorais. Ele exercia sua atividade política com consciência, com a mais limpa honestidade, voltada para uma benfazeja cidadania. Era simpatizante de um socialismo inofensivo e sentimental, que podemos até chamar de utopia cabocla. Na época, pelo rádio, se ouvia falar nas greves dos trabalhadores, lá em São Paulo, em luta por melhores salários, por uma vida digna e melhor, citavam as convenções de um Partido que conclamava a batalha pela reforma agrária, à luta pelo “Petróleo é Nosso”, pela concentração de esforços contra o imperialismo americano. Por aqui, em 1943, onde até a Câmara Municipal vivia momentos conturbados, pois havia duas assembleias constituintes, uma verdadeira e outra falsa, dividindo os vereadores, uma terrível mão invisível chegou. A perigosa concepção de um senador iaque, Mccarthy, para combater e perseguir todos aqueles que tivessem alguma relação com o comunismo de um mundo bipolar, era uma imperceptível garra feroz e destruidora, que por aqui também sobreveio. Uma simples imagem na alma de um povo ignorante e ingênuo logo vira um fato concreto, e num instante os comunistas estavam em todo canto, devorando criancinhas. Os soldados aliciados para uma guerra invisível são os piores soldados, não sabem por que lutam, por que matam ou morrem! As unhas afiadas do mecartismo ganhavam adeptos. E o Luiz continua a falar, se empolgando cada vez mais, como se revivesse aqueles instantes:

– Aquele foi um momento perigoso, Raimundo! O Luiz Mano tramou um comício, planejou uma assembléia popular, na Praça da Estação, e convidou seus inúmeros amigos e os muitos simpatizantes de suas ideias, já que nem a câmara municipal se entendia. Mas, às vezes, entre os amigos existe a dissimulação, e o fingimento correu a gritar nos ouvidos da incivil estupidez.

O zelo mais excessivo do capitalismo achava-se alojado na igreja, encoberto, inconscientemente, pelas batinas. O diligente Pe. Bonfim, já não se entendia bem com o professor Luiz Mano, um sujeito de ideias estranhas e chegado a esse comunismo de Karl Marx que ousava afirmar: “A religião é o ópio do povo”. Com uma propícia ajuda, convocou a milícia de Sobral, que chega disfarçada no intuito de impedir a abertura de uma Loja Maçônica, o braço direito do diabo, a filial do império das trevas, como dizia a igreja católica na época. E logo na véspera da chegada da Santa Peregrina, acontecer esse primeiro comício de esquerda nos Sertões de Crateús, era inadmissível.
– O comício já iniciara quando, de repente, chega o Pe. Bonfim, colérico, conduzindo a polícia e uma multidão de fieis, todos propensos a uma guerra santa: “Viemos, em nome de Deus, acabar essa pouca vergonha, de quem não tem fé e quer enganar o povo, com esse comunismo diabólico que veio para destruir a religião e a democracia.”

– Raimundo, não houve um tiro. Somente o trabalhador Luiz Mano, em serena calma, enfrentou as chispas e os raios desferidos pelo Pe. Bonfim. Como um cidadão íntegro pediu para que os correligionários fossem para casa, evitando prisões e derramamentos de sangue, mas consciente de que, aquela ira toda não vinha da voz de um sacerdote ali presente, e sim das garras do capitalismo ganancioso que ganhava vida e voz, e vencia mais uma batalha, mas não a guerra.

A cerimônia fúnebre chegará ao fim, e fiquei a imaginar que o lacre que colocaram naquela lápide não encerrou uma vida, como disse Marcos Antonio no funeral de Júlio Cesar, o bem que se faz não é enterrado com os nossos ossos, ele fica como um exemplo para outras vidas que merecem ser vividas com denodo e coragem de um heróico Luiz Mano ou como a obsequiosa humildade de um prestativo Matos Melo.

Despeço-me do amigo Luiz, que resolve voltar para seus urgentes afazeres na capital e sigo no caminho de casa a cantarolar, involuntariamente, a bela música utopia, do cantor e agente pastoral Zé Vicente (Quando o dia da paz renascer / Quando o Sol da esperança brilhar / Eu vou cantar // Vai ser tão bonito se ouvir a canção / Cantada de novo / no olhar da gente a certeza de irmãos / reinado do povo) fascinado com aquela história de um herói real e crateuense que pretendo mostrar para meus filhos, que sonham com os imaginários guerreiros de uma distante literatura.

Raimundo Candido

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