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segunda-feira, 15 de junho de 2009
REVISTA ISTOÉ - PRESIDENTE DO STF DIZ QUE ESTÁ NO MEIO DE UM TIROTEIO IDEOLÓGICO POR CONTRARIAR INTERESSES
Depois do polêmico bate-boca com o ministro Joaquim Barbosa em abril, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, recebeu o apoio de boa parte de seus colegas. Mas tem sido alvo de abaixo-assinados na internet e enfrenta protestos contra sua permanência à frente do STF, algo inédito na história do Judiciário. Na quarta-feira 3, ele foi vaiado por estudantes após audiência na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
Em entrevista à ISTOÉ, Gilmar afirmou que ficou no meio de um tiroteio ideológico, desde o momento em que concedeu dois habeas-corpus ao banqueiro Daniel Dantas. "Evidente que é um movimento organizado. Muito provavelmente, até remunerado. Em geral, imprimem panfletos. Mas isso não me cabe questionar", diz. "No caso Daniel Dantas, como havia uma luta política e comercial, há interesses contrariados, obviamente." Para Gilmar, a maior exposição do STF torna as pessoas que o integram mais expostas, mais suscetíveis a eventuais ataques. Mas ressalta que a autoridade da mais alta corte do País "é inequívoca". Quanto à sugestão de Barbosa para que Gilmar "ouça mais as ruas", o presidente do STF rebate: "Isso serve para encobrir déficits intelectuais."
ISTOÉ - Existe um descompasso, hoje, entre a opinião pública e o Poder Judiciário? Seria o caso de ouvir as ruas?
Gilmar Mendes - O embate que surge nesse tipo de colocação é saber se no combate à impunidade nós deveríamos fazer concessões no que diz respeito à observância dos direitos e garantias individuais. Entendo que a questão não está à disposição do julgador. A Constituição não deixa esse espaço. Combate à impunidade? Sim. Combate ao crime organizado? Sim. Mas dentro dos paradigmas do Estado de Direito. Se formos consultar a chamada opinião pública, vamos ter que saber como se faz a consulta. É a minha opinião pública, é a sua opinião pública? É a opinião pública de que grupo? É a minha rua? É a sua rua? É a rua de quem? É o ibope do bar? Do Baixo Leblon?
ISTOÉ - O País caminharia, então, para um outro tipo de Justiça?
Gilmar - Exatamente, Justiça plebiscitária. Tenho a impressão de que essa discussão escamoteia, na verdade, déficits argumentativos e serve de álibi para fundamentar tudo. A Justiça nazista era assim. Decidia em nome do interesse do Reich, ou de interesses "mais elevados". Isso não tem nenhum cabimento.
ISTOÉ - Como o sr. vê as manifestações contra a sua presença no STF?
Gilmar - Evidente que é um movimento organizado. Muito provavelmente, até remunerado. Em geral, imprimem panfletos. Mas não me cabe questionar isso. Tenho inúmeras manifestações de apoio em todos os setores, nunca tive nenhuma dificuldade de andar pelas ruas.
ISTOÉ - As pessoas parecem acreditar que podem influenciar o STF.
Gilmar - Isto é uma bobagem. O tribunal nunca seguiu esse tipo de toada. Quando, por exemplo, no início da ditadura, houve as violências mais marcantes contra governadores, foi o STF que deu liminar em habeas corpus. Nas fases por que passamos hoje, especialmente a partir de 2003, 2004, com a nova ênfase das ações policiais, foi aqui que as pessoas encontraram abrigo. Nas operações Anaconda, Navalha e outras, com ataques inclusive à magistratura, foi aqui que as pessoas encontraram salvaguarda. Mas no caso Daniel Dantas, como havia uma luta política e comercial, há interesses contrariados, obviamente.
ISTOÉ - As pressões surgiram em função do caso Daniel Dantas?
Gilmar - Com certeza. É fundamentalmente em função desse caso, que teve duas decisões liminares concedidas por mim, referendadas pelo plenário, por nove votos a um.
ISTOÉ - Os críticos dizem que o STF agiu como juiz de primeira instância.
Gilmar - Esta é outra lenda urbana. É uma mentira deslavada. O caso tinha passado por todas as instâncias, pelo juiz de primeiro grau, tinha passado pelo Tribunal Regional Federal, pelo STJ e estava aqui com o ministro Ayres Britto. Quanto ao segundo habeascorpus, o tribunal considerou que era descumprimento do primeiro.
ISTOÉ - A Constituição determina que se fique em liberdade até que o processo transite em julgado. Mas alguns casos geram clamor público e deixam uma sensação de impunidade.
Gilmar - No Brasil temos hoje cerca de 480 mil presos, dos quais um número elevado, talvez de 50% a 60%, é de presos provisórios e outros já com sentenças definitivas. É um índice elevadíssimo, se considerados os índices mundiais de população carcerária em relação ao número de habitantes. Não mostra uma Justiça leniente quanto às prisões. O tribunal admite, mesmo depois de uma sentença de primeiro, de segundo grau, que se determine a prisão, mas com os fundamentos da prisão preventiva, quer dizer, o risco de fugir e a preservação da ordem pública. Mas há que exigir a fundamentação para a prisão. Não pode ser automática.
ISTOÉ - Muita gente diz que o STF, em cento e tantos anos, nunca condenou um parlamentar.
Gilmar - Não é verdade. No passado, vamos encontrar pessoas que foram condenadas ou absolvidas. Mas, especialmente após a Constituição de 1988, os processos estavam parados. Esses processos só retomaram o seu curso normal a partir de 2002, 2003. Então, esse discurso é falso. Estamos cheios de lenda urbana, porque estamos no meio de uma luta política em que, mesmo pessoas sem formação jurídica, às vezes de formação jurídica não suficiente, transformaram-se em lutadores.
ISTOÉ - Como assim?
Gilmar - São gladiadores da opinião pública. Repito: essa tese de a Justiça "ouvir as ruas" (defendida por seu desafeto, ministro Joaquim Barbosa) serve para encobrir déficits intelectuais. Eu posso assim justificar-me facilmente, não preciso saber a doutrina jurídica. Posso consultar o taxista.
ISTOÉ - Quando o sr. fala em luta política, parece que há duas visões no STF.
Gilmar - Não vou falar sobre isso.
ISTOÉ - Mas há, no STF, duas concepções diferentes do direito?
Gilmar - O resultado dos julgamentos do STF está espelhado nas suas decisões, nos acórdãos, isso é inequívoco. Agora, creio que o foro privilegiado, o foro por prerrogativas de função, como nós o chamamos, tem cumprido função importante, até mesmo no que concerne à governabilidade. Dentro do conceito de criminalização da atividade política, se não tivesse foro privilegiado, certamente o presidente Lula não passaria por uma cidade sem ter que depor ao Ministério Público ou à polícia. É isso que se quer?
ISTOÉ - Por que a opinião pública tem a sensação de impunidade?
Gilmar - Quanto ao modelo especialmente de defesa, temos uma sociedade com muitas desigualdades, em que a defesa é paga. E pessoas que dispõem de advogados têm melhores condições. As outras dependem de defensorias públicas. Até há pouco tempo uma boa parte dos Estados nem sequer tinha essas defensorias.
Nós temos nos engajado inclusive no sentido de estimularmos as defensorias públicas, a advocacia voluntária. Porém, se olharmos numa outra perspectiva, certamente o serviço de saúde das pessoas aquinhoadas é melhor do que o serviço de saúde das pessoas sem recursos. O que vale também para o serviço escolar. Sem dúvida, a maior parte da população presa é analfabeta e pobre.
ISTOÉ - O que o sr. sente quando visita os presídios e vê a maioria pobre e analfabeta?
Gilmar - Essa é uma realidade.
ISTOÉ - O sr. não se sente frustrado, sem condições de mudar essa realidade?
Gilmar - Esse não é um problema que me cabe resolver. Essa questão tem que ser resolvida pelas instâncias apropriadas. O que estamos fazendo, menos até como presidente do Supremo, mais como presidente do Conselho Nacional de Justiça, é a adequada revisão das penas impostas. É preciso saber se as pessoas estão cumprindo a pena devida. Nessa área, por exemplo, não tem ninguém para me dar lição. Sou eu que tenho liderado, via CNJ, o processo de mutirão carcerário em todo o País. Antes, ninguém tinha feito isto.
ISTOÉ - Quais as medidas do CNJ?
Gilmar - Estamos incentivando a instalação das varas de execução criminal virtuais, para que haja controle e não haja esse quadro vergonhoso de encontrarmos pessoas que já cumpriram a pena duas vezes. Estamos discutindo a prisão provisória, exigindo que o juiz faça verificação do tempo de prisão, a cada três meses.
ISTOÉ - Como presidente do CNJ, o sr. pediu a suspensão da construção da sede do TRF1. Estava muito cara?
Gilmar - Nós estamos arrostando todas estas questões, as obras, a contratação de servidores e o aumento de quadros. Abrimos uma caixa de Pandora. Estamos discutindo todos os temas com grande abertura e honestidade.
ISTOÉ - Qual o problema mais grave da Justiça brasileira?
Gilmar - Talvez o maior problema hoje seja de fato a morosidade, mas decorrente em grande parte do excesso de demanda. Nós falamos de números de processos extremamente elevados, cerca de 70 milhões de processos no ano passado. Isso significa praticamente um processo para cada três habitantes.
ISTOÉ - Mesmo assim, a Justiça está ficando mais célere?
Gilmar - Tenho a impressão que sim. É claro que nós temos muitos desafios. Na medida em que temos êxito no conhecimento, na expansão das nossas atividades, nós atraímos mais processos. Em alguns casos eu até usei a expressão: "a gente é tão exitoso em determinadas áreas que acaba produzindo fracasso".
É o que eu chamo de "fracasso do sucesso", como já aconteceu no Juizado Especial Federal, que começou com um número pequeno de causas e teve uma expansão brutal de causas exatamente porque as pessoas perceberam que ali se obtinha uma decisão mais rápida.
ISTOÉ - Quando deve ser o julgamento do ex-ministro Antônio Palocci?
Gilmar - Talvez no final deste mês ou no início do mês de agosto.
ISTOÉ - As polêmicas recentes que envolveram o STF não afetam a imagem da mais alta corte do País?
Gilmar - Tenho a impressão que não. É claro que a maior exposição do tribunal chama a atenção e torna o tribunal e também as pessoas que o integram mais expostas, mais suscetíveis a ataques. Então é natural que isso ocorra. Mas é notório que, se nós hoje olharmos a autoridade do tribunal, ela é inequívoca. E certamente o tribunal não tem uma classificação depreciativa, se tivermos em conta os demais poderes.
ISTOÉ - A ideia de alguns ministros de limitar a transmissão das sessões do STF pela televisão pode prosperar?
Gilmar - Não acredito. Sempre que há algum incidente, e já tivemos alguns, vem essa colocação. Não acredito que essa ideia venha a frutificar ou que tenha maioria no âmbito do tribunal. Na realidade, a TV Justiça é hoje um símbolo da própria transparência do STF, que vem inclusive sendo imitada.
ISTOÉ - O sr. acha que poderia haver um outro sistema para escolher os ministros do STF?
Gilmar - Sempre há possibilidade de aperfeiçoar modelos. Eu tenho a impressão de que esse modelo que praticamos parece ter consistência. Se for introduzido o mandato, por exemplo, nós teremos o problema da renovação contínua da corte. Se abrirmos para uma escolha pelas casas legislativas, haverá o risco da politização excessiva e até mesmo de partidarização. Se abrirmos para a participação de organizações corporativas, teremos o risco da sindicalização das escolhas. É preciso estar atento.
Fonte: Revista IstoÉ
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