sexta-feira, 23 de outubro de 2009

DIA DO AVIADOR - LEMBRANDO SANTOS DUMONT




URUBU VOA? HOMEM VOA?

Nas tardes quentes da fazenda do engenheiro Dumont, em Ribeirão Preto, São Paulo, os meninos brincam. Estamos no princípio dos anos oitenta do século XIX. Na Rússia, o czar Alexandre II. foi assassinado, sucedendo-lhe Alexandre III, e Dostoievski escreve Os Irmãos Karamazov. O reino da Sérvia é proclamado e a Itália junta-se à Alemanha e à Áustria na Tríplice Aliança. Wagner compõe o Parsifal, morrendo dois anos depois. Marx morre também. A linotipia é inventada. No Brasil, reina o imperador Pedro II, há ainda feridas e soam os ecos da vitória sobre o Paraguai na última das guerras platinas, os mações e os republicanos conspiram, a abolição da escravatura divide a sociedade brasileira. Já em 1871 a Lei do Ventre Livre viera libertar os filhos de escravos nascidos a partir desse ano. O caminho-de-ferro vai abrindo novas comunicações, as indústrias surgem pelo país, há conflitos entre o Estado e a Igreja. Tudo isto são coisas que interessam muito ao engenheiro Dumont e aos amigos que aos serões se reúnem na fazenda e discutem estes temas com ar grave, cofiando bigodes, alisando barbas, bebendo um cordial e fumando olorosos charutos. Os jornais de São Paulo todos os dias renovam ou reacendem os assuntos.

Porém, nenhum destes importantes acontecimentos preocupa os meninos que brincam na varanda da fazenda. Estão a jogar ao jogo das prendas. Um deles pergunta: - Voa o gato? Todos gritam: - Não! - Voa o urubu? Levantam os braços: Voa! Voa o carcará? - Voa! - Voa o homem? Todos menos um gritam: - Não! Alberto, um dos filhos do engenheiro, levanta os braços e grita: Voa! Risadas dos irmãos e dos outros meninos. Alberto tem de pagar uma prenda. Ri-se com os outros, mas teima: - Um dia, o homem há-de voar!

O seu mestre Júlio Verne diz-lhe que sim, que o homem voa. Sua irmã Virgínia ensinou-o a ler. Frequenta agora o Colégio, mas todos os tempos livres são passados a devorar as páginas de Cinco Semanas em Balão, de Da Terra à Lua, de Vinte Mil Léguas Submarinas ou da Volta ao Mundo em Oitenta Dias. Phileas Fogg ou o Capitão Nemo são personagens com quem convive no seu dia-a-dia. Nas páginas de Verne, o homem voa já, até mesmo para fora do planeta. Alberto sabe que não faltará muito para que nos céus da realidade o homem voe também.

Na fazenda, Alberto observa as máquinas. As lavadeiras, o descascador, o separador, o ensacador onde o café faz o seu percurso desde a plantação até aos sacos em que seguirá nos vagões do caminho-de-ferro. Vendo as pesadas locomotivas a vapor, conclui que nunca será com máquinas assim que o homem poderá voar. À mente do jovem sonhador acorrem as lendas de Dédalo, Ícaro e Ariel, a história de Olivier de Malmesbury, o monge inglês que, no século XI, construiu um par de asas e com elas se lançou do alto de uma torre, quebrando as pernas, os desenhos de Leonardo da Vinci sobre as estrutura das asas dos pássaros, os músculos que as movem, a função das penas, a tentativa de Bartolomeu de Gusmão que, em 1709, se eleva a 200 pés de altura nos céus de Lisboa, perante a pasmada corte de D. João V, na sua Passarola, ou a «máquina de andar pelos ares», como também lhe chamava, as experiências dos irmãos Montgolfier, a morte de Pilâtre de Rozier ao tentar atravessar a Mancha em balão... Uma das suas brincadeiras favoritas é a de lançar papagaios e de correr, segurando a corda, fazendo-os voar. Nas noites de São João, ele e outros meninos constróem balões de papel. Quando os soltam, fica a vê-los perder-se no céu escuro, uma pequena e luminosa mancha colorida, que o ar quente da mecha faz subir. Em 1888, ano em que a escravatura é abolida no Brasil, visita com a família São Paulo. Numa feira vê, deslumbrado, pela primeira vez um homem voar: um acrobata estrangeiro sobe num balão e lança-se depois em pára-quedas.

FINALMENTE, O SUCESSO

As aventuras e desventuras do «brasileiro voador» tornam-no numa figura conhecida de Paris. Mas ele não se deixa embriagar pelo sucesso, e vai aperfeiçoando as suas máquinas.
E, em Outubro de 1901 sobe no n.º 6, dá uma volta completa à Torre Eiffel e regressa a Saint-Cloud. Demorou 31 minutos, mais um do que o regulamento do prémio estabelece como limite. Ovações da multidão e hesitações do júri. Finalmente, o prémio é-lhe entregue pois, embora ainda no ar, atravessou a linha de chegada dentro do tempo. Santos-Dumont reparte o valor do prémio com técnicos e auxiliares e o que resta é distribuído por operários desempregados.

O êxito internacional chega por fim. É homenageado em Londres num banquete do Royal Aero Club. O príncipe do Mónaco convida-o a construir um hangar e uma oficina no principado. Eugénia de Montijo, a viúva de Napoleão III visita-o. O governo francês contrata-o para construir o primeiro aeródromo do mundo em Neuillly. O inventor concebe o Santos-Dumont n.º 7 e, a seguir, o n.º 9 (detesta o número oito e, por isso, salta-o). O n.º 9, a Balladeuse, fica famoso. É o meio de transporte pessoal de Santos-Dumont - nele, desloca-se em Paris, visita amigos, vai a almoços e a reuniões... Torna-se familiar nos céus de Paris. Uma vez, os parisienses vêem, preocupados, a aeronave perder altura. Será que vai estatelar-se? Não. Pousa suavemente na rua. Alberto sai, impecavelmente vestido, entra num bar e pede um café. E os modelos sucedem-se, cada vez mais perfeitos. Em 1905 nasce o n.º 14. E, logo após, o célebre 14-Bis. O 14-Bis é já um aeroplano, dotado de um motor a gasolina. A princípio eleva-se rebocado pelo n.º 14 e daí o seu nome. Depois, Dumont atrela-o a um burro que, fustigado, corre pela pista, até que o aeroplano sobe. Mais uma vez, recorre à sua experiência infantil dos papagaios de papel. Em 1906, ainda no 14-Bis, ganha os prémios do Aeroclube e Archdeacon. É considerado o pai da aviação, embora outros, tais como os americanos irmãos Wright, reivindiquem também essa glória.

A MORTE PASSA A TER ASAS

Quando, em 1914, se desencadeia a Primeira Grande Guerra uma nova panóplia de armas vai surgindo: submarinos, gases tóxicos, carros blindados, balas explosivas e aviões. As potências deitam mão de todos os meios de destruição que têm ao alcance das mentes perversas dos dirigentes políticos e militares. Invenções concebidas para fins pacíficos, são convertidas em máquinas de morte. Quando a guerra acaba, há dez milhões de soldados mortos, cidades destruídas, milhões de civis mortos ou sem lar.

Entretanto, Santos-Dumont, devido a doença, é obrigado, desde 1910, a abdicar dos seus voos sem, no entanto, se desligar da aviação. Assiste horrorizado à transformação do seu invento em mais um recurso do Apocalipse. Lança um apelo às potências beligerantes para que seja proibido o armamento aéreo. Sem qualquer resultado. Sempre que tem conhecimento de um bombardeamento aéreo, de um combate entre aviões ou mesmo de um acidente, cai em depressão profunda. A sua ideia não era esta...

Compra então um terreno em Petrópolis, perto do Rio, e aí constrói uma casa provida de diversas comodidades que antecipam alguns dos electrodomésticos actuais. Chama-lhe Encantada. Aí escreve um livro, O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos. Procura dar uma ajuda ao governo brasileiro, dando conselhos sobre a construção de aeroportos, a formação de pilotos e a construção de aviões.

Em 1922 volta a Paris. É convidado para presidir ao banquete de homenagem a Charles Lindbergh que atravessou o Atlântico Norte, mas a doença impede-o. Em 1928 volta de novo ao Brasil. Continuam as homenagens: a Legião de Honra francesa, um lugar na Academia Brasileira de Letras (que não ocupa). Indiferente a tudo, Santos-Dumont ignora honrarias e nem sequer registra as patentes das suas múltiplas invenções. A depressão ataca-o cada vez mais. Sente-se responsável por todos os acidentes aéreos, pelo aproveitamento militar do seu esforço científico, por tudo o que de mau a aviação significa. Com menos de sessenta anos é um velho doente e taciturno.


O ÚLTIMO PAPAGAIO

Desde 1930, seguindo o exemplo da Europa, onde na Alemanha, em Itália, em Portugal, regimes de extrema direita vão tomando o poder, o Brasil é também governado por uma ditadura, o chamado «Estado Novo» de Getúlio Vargas. Em 1931, Santos-Dumont, cada vez mais doente física e psiquicamente, regressa de França e instala-se próximo de São Paulo, rodeado de cuidados pelos familiares. Parece melhorar, faz pequenos passeios, frequenta a Hípica Paulista e o Clube Atlético Paulistano, visita a redação de O Estado Paulista.

Em 9 de Julho, desencadeia-se um movimento constitucionalista em São Paulo. Diversas forças políticas procuram restabelecer a normalidade democrática sufocada pela ditadura getulista. Santos-Dumont entusiasma-se. Está na praia do Guarujá a convalescer. Redige um manifesto aos mineiros incitando-os a porem-se ao lado dos paulistas. Mas o governo de Getúlio Vargas vai reprimir brutalmente o movimento. Na manhã de 23 Alberto veio até à praia e ajuda um menino a elevar o seu colorido papagaio de papel. Corrigido o peso da cauda, endireitada uma cana da estrutura, o papagaio sobe orgulhoso nos ares. O menino exulta e bate palmas. Dumont sorri ternamente e olha os céus. Nessa altura ouve-se um ruído crescente e na linha de horizonte cresce uma esquadrilha aérea. São aviões federais que vão bombardear um cruzador paulista ancorado em Santos. Brasileiros matam brasileiros servindo-se de uma máquina que ele inventou e foi aperfeiçoando, passo a passo, com tanto amor e ilusão...

Vai para casa e suicida-se nessa noite.

(Por Carlos Loures)

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