segunda-feira, 1 de março de 2010

O ADEUS A JOSÉ MINDLIN


José Ephim Mindlin ergueu um império literário em sua própria casa. Ele dedicou sua vida à busca por obras raras em viagens pelo Brasil e Exterior. A procura incansável acabou ontem, quando o bibliófilo e empresário morreu em São Paulo, aos 95 anos.

Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Mindlin estava internado havia aproximadamente um mês no Hospital Albert Einstein para tratar uma pneumonia. O enterro ocorreu no Cemitério Israelita da Vila Mariana, zona sul da cidade. Casado por 68 anos com Guita Mindlin, já falecida, teve quatro filhos: a antropologa Betty, a designer Diana, o engenheiro Sérgio e a socióloga Sônia.

Nascido em São Paulo, em 8 de setembro de 1914, era filho de judeus nascidos em Odessa (Ucrânia), que vieram para o Brasil. Estudou Direito na Universidade de São Paulo (USP) e fez cursos de extensão universitária na Universidade de Columbia, em Nova York. Advogou até 1950, quando deixou a atividade para fundar a empresa Metal Leve SA, que se destacou no setor de peças para automóveis e hoje é controlada pela multinacional alemã Mahle. Permaneceu na companhia até 1996.

Aos 32 anos, financiado por um empresário, conseguiu um sócio e fundou a livraria Parthenon, em São Paulo. Iniciou assim seu périplo em busca de obras raras para sua biblioteca particular.

Acervo inclui raridades de autores nacionais


A paixão pela literatura fez com que acumulasse cerca de 40 mil volumes, colecionados desde os anos 30. Era considerado o dono da maior biblioteca privada do país. O acervo inclui raridades, como a primeira edição de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, documentos do século 16 com as primeiras impressões que padres jesuítas tiveram do Brasil, jornais anteriores à Independência e manuscritos que resgatam a gênese literária de grandes obras, como Sagarana, de Guimarães Rosa, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Ele doou grande parte do seu acervo para a USP, transformando-o na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.

Mindlin ocupou a cadeira 29 da ABL. Foi eleito em 20 de junho de 2006, sucedendo o escritor Josué Montello. É o autor de Uma Vida entre Livros – Reencontros com o Tempo e Memórias Esparsas de uma Biblioteca. Em 2007, recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Passo Fundo (UPF).

Em nota, o presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), Marcos Vilaça, afirmou que “Mindlin era um emblema do livro, tinha com ele uma relação orgânica”.

(Do Jornal Zero Hora)

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MINDLIN: O EMPRESÁRIO ILUMINISTA, O DOADOR DE LIVROS

Nunca vou me esquecer da reunião da Fiesp em que, de repente, José Mindlin se aproximou e puxou assunto.

O tema na reunião da Fiesp era um pedido de empréstimos subsidiados, a proteção contra setores que não conseguiam competir com produtos importados. Sei lá. Alguma coisa assim. Na verdade, era um desses assuntos que não merecem ficar na memória, de tanta mesmice. O novo, o diferente, foi a conversa de Mindlin sobre a Semana de Arte de 22. Tive uma aula. Esqueci os outros empresários e fiquei dando atenção àquela conversa afável, cheia de novidades, de Oswald e Mário de Andrade, da publicação de A Revista que ele acabara de fazer. Sai entusiasmada e mais surpresa fiquei quando recebi em casa uma coleção de A Revista que ele me mandou.

Mindlin era doce e interessante. Mindlin era iluminado e iluminista. Mindlin era diferente.

Fui algumas vezes vê-lo. Nunca perdi um minuto nessas conversas. Dele saia um fluxo, em corrente contínua, de informações sobre livros. Não havia descrente que não entrasse para a religião dele sobre livro. Guita era igual. Os dois, um par perfeito.

Anos atrás, pedi à Globonews para fazer como primeiro programa do ano uma entrevista com ele, em sua biblioteca. Naquela tarde inesquecível, eu o entrevistei junto com Paulo Marcelo Sampaio. Só que cheguei horas mais cedo. Nenhum jornalista jamais chegou tão cedo para uma entrevista. Nem saiu tão tarde. E eles me pediram para ler para eles. Eu li para ele e Guita. Às vezes tropeçava e eles, de memória, corrigiam. Li poesias de Drummond. Li vários outros trechos que eles se lembravam de cor.

Falamos da paixão por livros que embalou minha infância, me socorreu na adolescência, me acompanha vida afora. Paixão que fez Mindlin gastar um dinheiro incontável juntando livros que doou para o Brasil.

Lembro de quando ele ganhou o Faz Diferença do Globo. Há uma escada para subir ao palco do Copacabana Palace. Eu pedi às meninas do cerimonial que me dessem a honra. Desci do palco com Ancelmo - nós dois fazemos a apresentação do prêmio - e o amparamos na subida. E ele não pesava mais do que a mão de uma criança. Firme ainda aos 90 anos.

No dia da entrevista em sua casa, Guita me contou que um dia houve uma tempestade em São Paulo, ela estava sozinha em casa, e ficou preocupada: que livro salvaria se a enchente entrasse na casa?

- Que livro salvaria? perguntei

- Os poemas de Petrarca.

Manuseei o livro favorito de Guita com temor reverencial. E Mindlin abriu o livro e me mostrou que alguns poemas tinham sido censurados pela Inquisição. Os censores medievais passaram uma tinta em cima. O tempo apagou a tinta e fez reaparecerem os poemas censurados. Me contou que, certa vez, tinha ido a Praga e lá se encontrou com um professor que tinha acabado de sair da prisão decretada pelo governo comunista. O professor estava deprimido, achando que a opressão soviética nunca acabaria. E ele consolou o professor contando a história da vitória de Petrarca sobre a censura. O professor triste era Vaclav Havel, que depois governou a livre República Tcheca.

Eu brinquei:

-Você me contou uma história com dois finais felizes.

O consolo no momento em que o Brasil perde o gigante dos livros é saber que ele se encontrará com sua Guita e juntos falarão os poemas de Petrarca, ou lembrarão as histórias de 22, ou pensarão juntos em como tornar o Brasil, um dia, um país de leitores.


(Por Miriam Leitão)

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