sexta-feira, 20 de setembro de 2013

FERREIRINHA, O HERÓDOTO DO SERTÃO!


Enquanto o Universo flui constante, a instável compleição da humanidade evolui, material e espiritualmente, mas a natureza humana nunca deixou de ter seus ritos de passagens como nas festas de salões, nas atividades religiosas dentro das catedrais ou mesmo na assinatura de um simples papel cartorial, confirmando a admissão de um jovem para uma nova etapa de vida. Impressionei-me, e comovido estou, com o momento ritualístico dos índios canadenses, chamados Algonquinos, eles enjaulam os meninos das tribos e os obrigam a ingerir wysoccan, uma droga fortíssima e toda memória da infância é apagada das mentes dos jovens aborígines, para que possam se tornar homens e membros produtivos na tribo. Admiro a faculdade de reter as impressões esmaecidas do tempo, guardar as reminiscências da infância e relatar em FATOS E CAUSOS de um tempo pretérito, pois é um privilégio para poucos cidadãos no mundo, menos para os jovens Algonquinos que perderam as lembranças do passado.

O poeta Saramago, categórico, afirmou: “Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória.”

Em Cratheús, da distante década de 1920 e era da fundação do PC do B, o jovem Ferreirinha e o irmão caçula, Afonso, munidos de compridas varas enforquilhadas em rodas de madeira, engenhoca chamada “Mané mago”, dirigem-se ao poço da Sensa, ou à grota das cajás, para carregar latas d’água das cacimbas que margeiam o Rio Poti. Há pressa no caminhar dos meninos, pois terão ainda que cortar madeira para as brasas do fogão a lenha e devem voltar rápido para ajudar o pai, Seu Norberto Ferreira, distribuindo as bolachas da padaria, em balaios, nas bodegas dos Senhores Manoel Barbosa, Manoel Mano, Zé Bibino, Raimundo Cândido, Raimundo Fernandes, até nos últimos botequins do distante bairro dos Paus-Brancos.

Norberto pai, empresário de visão, até construía casas para alugar e garantir o futuro dos meninos, que tinham que colocar areia, tijolos, telhas, pedras no local das ditas construções. Depois da missão realizada, tinham o direito de experimentar a gengibirra, um suco de frutas, açúcar e gengibre, fabricados pelo Seu Cabeça Branca, a caminho dos banhos no Curtume.
Enquanto se ocupam do mister do dia-a-dia, os olhares vão captando as recordações do ar, os pés absorvem as lembranças da terra, alma vai sorvendo um mundo avelhantado e anseiam estar com os meninos vadios, com as crianças engenhosas, com os garotos briguentos que se divertem nos quintais e na piçarra das ruas, coisas que eles não podem fazer, pois o rito de passagem ordenado pelo rígido pai é trabalhar, sem oportunidade para estudar e raramente brincar. Atentos e ativos, meninos-homens que sobrevivem sem tempo para os doces sonhos, pois toda criança tem que ser pai de um ser que se humaniza e evolui, feito homem-menino aperfeiçoando-se no Universo que flui.

Na escola da vida só é necessário saber ler, se o olhar decifra os enigmas, se o olhar sente o invisível, se o olhar é de um vivo pensar, então os ritos já estão superados e todas as passagens são um simples abre-te sésamo, e foi o que ocorreu com o Jovem Norberto Ferreira Filho, o Ferreirinha, um memorialista que aprendeu o significado de complicadas palavras com a mãe e o entendimento do mundo com o pai.

Homem feito, na trilha do genitor que se foi, constitui uma família sólida dentro dos bons princípios, pelo equilíbrio da alma e intrepidez dos atos. Um altaneiro de costume simples e com a gentileza de um cavalheiro inglês ao receber os amigos que vinham visitá-lo: Geraldo Melo Mourão, Abelardo Montenegro, Pedro Lira, Juarez Leitão entre tantos... Mas sem perder a simplicidade rústica e poética manifestada no semblante de sertanejo, demonstrando, indistintamente, a todos, uma admirável coragem cívica!
Homem-heroi, um dia viaja com o Padre Moacir, que levava o pai, Estelano Cavalcante, para um sério tratamento de saúde em Fortaleza. A Maria Fumaça para na amarelada estação de Ipueiras, enquanto quem chega desce e quem parte diz um adeus lastimoso. Alguns curiosos sobem para prosear com os conhecidos que viajam e o terceiro apito já alertava à partida, mas uma displicente jovem, a Astrogilda Morreira, atarantada, cai entre os vagões do trem, em ato contínuo o comerciante Ferreirinha, e o adoentado Estelano, numa agilidade surpreendente seguram-na pelos braços e arremessam na calçada da Estação. O Pe. Moacir ficou assombrado, pelo ato de heroísmo dos dois cidadãos e pela surpreendente energia de seu pai, que não tinha forças nem para sustentar o corpo.
Admirador inconteste das ideias comunistas que se orvalhavam pelos rincões do País, tanto quando os companheiros de uma Utopia Cabocla crateuense – Leia-se: Luis Mano e outros herois – até se candidatara a Deputado Estadual, em 47, pelo histórico PC do B, mas amargou momentos de aflição e medo no tempo da Intransigência.

Todo dia 3 de Janeiro, fogos de artifícios pipocavam nos céus de Cratheús, pelo aniversário do Cavaleiro da Esperança, e ásperas vozes cochichavam nas casernas: - Ouviram? É obra do comunista Ferreirinha!

Todo dia 1º de maio, os muros da cidade amanheciam pixados, onde se lia “Viva o Dia do Trabalhador!”, “Viva a Classe Operária!”. Nas casernas, em surdina, se diziam: - Viram? É obra do comunista Ferreirinha!

Até na Igreja, o Padre interrompia seu sermão cheio de ameaças de um horrendo purgatório e vociferava: - Deviam pegar esse comunistazinho e fazê-lo limpar os muros da cidade e com a própria língua! E arrematava: - Os comunistas são crias do demônio que vieram para acabar com a Igreja e a Democracia! Apontava o dedo em riste para a residência do famoso comunista crateuense e finalizava: – Muito cuidado com ele, meus fiéis!

Qualquer alvoroço diferente na cidade, os militares iam buscar o Senhor Ferreirinha para prestar esclarecimento, e o Heródoto crateuense saía de lá com uma pesada ameaça de longa e indefensável cadeia.

As reuniões do partidão não tinham hora de ocorrer e podiam ser na padaria, na loja ou na própria residência de Senhor Ferreirinha. Dona Maria de Lurdes é que não gostava muito e sempre reclamava: - Isto é um absurdo, Ferreirinha! Esses homens entrando aqui em casa, a essa hora da madrugada! Os conspiradores eram pedreiros, carpinteiros, pintores, mecânicos, padeiros, pequenos comerciantes, todos almejando progresso e justiça social.

Certo dia uma das filhas, Maria da Glória, chegou chorando do colégio e disse que fora insultada por uma coleguinha que a chamara assim: - Ei, filha de comunista! O Senhor Ferreirinha teve que ir a escola passar uma borracha naquela ignorância, ensinar a não discriminação e o que era um bulling, para aquele corpo docente e discente.

No dia 31 de março de 1964, após ouvir a voz do Brasil, Norberto Ferreira Filho chama toda família e em tom solene, esclarecer: - Meus queridos filhos, daqui pra frente, vamos ter uns tempos difíceis! Hoje caiu um véu negro sobre o Brasil!
E o véu chegou rápido, pois o grupo de 16 pessoas que haviam assinado um documento de apoio ao Presidente João Goulart, foram declarados culpados e o Senhor Ferreirinha penou, com seus camaradas, 6 meses de injusta prisão.

O Heródoto nordestino, dono de uma memória magnífica, tinha que reconstruir as lembranças do sertão e faz como lhe ensinara o Professor Luiz Bezerra, mentor e amigo, escrevendo crônicas que são lidas, semanalmente, na Rádio Educadora, resultando nos preciosos livros que publicou. E sempre exercitava seu dote recitativo com o poema Caridade e Justiça de Guerra Junqueira, impressionando os ouvintes nas atividades sociais em que era convidado: “- No topo do Calvário erguia-se uma cruz, / pregado sobre ela o corpo de Jesus...” Os aplausos eram vigorosos pela emoção transmita na voz do recitador.

Se não fosse a intrepidez deste memorialista singular, estaríamos fadados ao longo esquecimento na historia e tenho a impressão que Crateús faria como os aborígenes canadenses, obrigando seus filhos a beber wysoccan, para apagar da memória o nosso passado.
Hoje encontramos Seu Ferreirinha sentado na calçada de sua casa, acompanhado de uma senilidade comum aos que atingem a longevidade. Um homem-menino e tão só, mas com a mesma esperança utópica de felicidade no rosto, coisa que nunca deixou de ter e ainda preserva aquela vontade de brincar na piçarra das ruas com os meninos traquinas, mas com a serenidade de quem alcançou as estrelas e guarda toda a luminosidade, na sua magnífica memória!

Raimundo Cândido

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