18/09/2013 PLENÁRIO
AÇÃO PENAL 470
V O T O
(s/ admissibilidade dos embargos infringentes)
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: O encerramento da sessão do dia 12 de setembro, quinta‐feira, independentemente da causa que o motivou, teve, para mim, Senhor Presidente, um efeito virtuoso, pois me permitiu aprofundar, ainda mais, a minha convicção em torno do litígio ora em exame e que por mim fora exposta no voto que redigira – e que já se achava pronto – para ser proferido na semana passada.
Impõe‐se registrar, ainda, Senhor Presidente, um significativo evento na nossa história constitucional vinculado, por uma feliz coincidência de datas, a este julgamento, pois, como se sabe, há exatos 67 (sessenta e sete) anos, precisamente no dia 18 de setembro de 1946, também uma quarta‐feira, foi promulgada, na cidade do Rio de Janeiro, então Capital Federal, a Constituição de 1946, que restaurou a liberdade em nosso País e que dissolveu a ordem autocrática fundada no regime político do Estado Novo, que considerava culpados, desde logo, os réus meramente acusados de determinados delitos, fazendo recair sobre eles, em preceito compatível com a índole ditatorial do modelo então instituído, o ônus de comprovar a própria inocência (Decreto‐lei nº 88, de 20/12/1937, art. 20, n. 5).
Em consequência desse significativo evento, o Supremo Tribunal Federal, logo após esse ato de promulgação, reuniu‐se para a sua primeira sessão de julgamento, agora sob a égide de uma ordem qualificada, no plano político‐jurídico, pelo signo da legitimidade democrática.
Na ocasião, o Ministro JOSÉ LINHARES, então Presidente do Supremo Tribunal Federal, assim se pronunciou, saudando, em nome desta Corte Suprema, o surgimento de um novo tempo:
“Antes de mais nada sejam as minhas primeiras palavras de congratulações com os ilustres colegas pela promulgação da nova Constituição, fato que vem de assinalar um marco destacado na vida jurídica do País.
Depois de termos atravessado uma longa estrada sombria, de indecisões e incertezas de um período ditatorial, é com grande alegria que o país readquire o seu poder de Nação livre regido por normas puramente democráticas.
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Só a ordem jurídica constrói e fortalece as instituições sem o que a vida e os direitos de cada um ficam à mercê da vontade ou do arbítrio de quem por acaso detém o poder.
A hora presente é de regozijo nacional, principalmente para a Justiça com o restabelecimento de sua autoridade e independência tão necessárias ao exercício da sua nobre missão.
A Carta Magna foi promulgada sob a proteção de Deus e com ela confio em que possamos, no cumprimento do dever sagrado, interpretá‐la e dar execução aos seus preceitos sob a inspiração dos sentimentos da mais pura justiça.” (grifei)
Note‐se, portanto, Senhor Presidente, a observação com que o eminentíssimo antecessor de Vossa Excelência na Presidência do Supremo Tribunal Federal, o Ministro JOSÉ LINHARES, enfatizou a importância e o alto significado da supremacia do Direito, da “rule of law”, na prática jurisdicional desta Corte e no respeito incondicional às liberdades fundamentais.
Essencial, por isso mesmo, Senhor Presidente, que esta Suprema Corte sempre observe, em relação a qualquer acusado, independentemente do crime a ele atribuído e qualquer que seja a sua condição política, social, funcional ou econômica, os parâmetros jurídicos que regem, em nosso sistema legal, os procedimentos de índole penal, garantindo às partes, de modo pleno, o direito a um julgamento justo, imparcial, impessoal, isento e independente.
Atento a tais ponderações, ressalto que a profunda divisão do Supremo Tribunal Federal no exame da matéria ora em análise põe em evidência, ainda mais por se tratar de processo penal de índole condenatória, a altíssima relevância da questão jurídica em julgamento, especialmente se considerarmos, como efetivamente considero, a densidade e a excelência dos votos – de todos os votos – proferidos pelos eminentes Juízes desta Corte Suprema.
Não desconheço, por isso mesmo, a imensa responsabilidade que me incumbe, como Juiz do Supremo Tribunal Federal, na definição da controvérsia ora em análise.
Sabemos todos, Senhor Presidente, que a Constituição da República de 1988, passados quase 25 anos de sua promulgação, atribuiu ao Supremo Tribunal Federal um papel de imenso relevo no aperfeiçoamento das instituições democráticas e na afirmação dos princípios sob cuja égide floresce o espírito virtuoso que anima e informa a ideia de República.
O novo Estado constitucional brasileiro, fundado em bases genuinamente democráticas e plenamente legitimado pelo consenso dos governados, concebeu a Suprema Corte de nosso País – que sempre se caracterizou como solo historicamente fértil em que germinou e se desenvolveu a semente da liberdade – como verdadeiro espaço de defesa e proteção das franquias individuais e coletivas, além de representar, em sua atuação institucional como órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional, um veto permanente e severo ao abuso de autoridade, à corrupção do poder, à prepotência dos governantes e ao desvio e deformação da ideia de Estado democrático de Direito.
Se é certo, portanto, Senhor Presidente, que esta Suprema Corte constitui, por excelência, um espaço de proteção e defesa das liberdades fundamentais, não é menos exato que os julgamentos do Supremo Tribunal Federal, para que sejam imparciais, isentos e independentes, não podem expor‐se a pressões externas, como aquelas resultantes do clamor popular e da pressão das multidões, sob pena de completa subversão do regime constitucional dos direitos e garantias individuais e de aniquilação de inestimáveis prerrogativas essenciais que a ordem jurídica assegura a qualquer réu mediante instauração, em juízo, do devido processo penal.
A questão da legitimidade do Poder Judiciário e do exercício independente da atividade jurisdicional foi bem analisada em brilhante artigo da lavra do eminente Juiz Federal PAULO MÁRIO CANABARRO T. NETO, que examinou o tema na perspectiva das manifestações populares e da opinião pública, sustentando, com razão, que “a legitimidade do Poder Judiciário não repousa na coincidência das decisões judiciais com a vontade de maiorias contingentes, mas na aplicação do direito sob critérios de correção jurídica, conforme as regras do discurso racional” (grifei).
Assim como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem entendido qualificar‐se como abusiva e ilegal a utilização do clamor público como fundamento da prisão preventiva (RTJ 112/1115 – RTJ 172/159 – RTJ 180/262‐264 – RTJ 187/933‐934 – RTJ 193/1050, v.g.), esse ilustre magistrado federal, no trabalho que venho de referir, também põe em destaque o aspecto relevantíssimo de que o processo decisório deve ocorrer em “ambiente institucional que valorize a racionalidade jurídica”, acentuando, ainda, com apoio no magistério de ROBERT ALEXY (“Constitucionalismo Discursivo”, p. 163, 2007, Livraria do Advogado), o que se segue:
“A questão da legitimidade do Poder Judiciário surge sempre que se pergunta sobre o alcance da norma constitucional expressa no enunciado de que ‘todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente’ (art. 1º, parágrafo único).
Se o poder judicial não é exercido pelo povo ‘diretamente’, nem por meio de ‘representantes eleitos’, impõe‐se investigar o que torna justificável a aceitação das decisões dos juízes por parte da cidadania. A única possibilidade de conciliar a jurisdição com a democracia consiste em compreendê‐la também como representação do povo. Não se trata, obviamente, de um mandato outorgado por meio do sufrágio popular, mas de uma representação ideal que se dá no plano discursivo, é dizer, uma ‘representação argumentativa’.
Essa representação argumentativa é exercida não no campo das escolhas políticas – cujas deliberações versam (predominantemente) sobre o que é bom, conveniente ou oportuno –, mas no campo da aplicação do direito, sob as regras do discurso racional por meio do qual se sustenta e se declara o que é correto, válido ou devido.” (grifei)
O que mais importa, neste julgamento sobre a admissibilidade dos embargos infringentes, é a preservação do compromisso institucional desta Corte Suprema com o respeito incondicional às diretrizes que pautam o “devido processo penal” e que compõem, por efeito de sua natural vocação protetiva, o próprio “estatuto constitucional do direito de defesa”, que representa, no contexto de sua evolução histórica, uma prerrogativa inestimável de que ninguém pode ser privado, ainda que se revele antagônico o sentimento da coletividade!
O dever de proteção das liberdades fundamentais dos réus, de qualquer réu, representa encargo constitucional de que este Supremo Tribunal Federal não pode demitir‐se, mesmo que o clamor popular se manifeste contrariamente, sob pena de frustração de conquistas históricas que culminaram, após séculos de lutas e reivindicações do próprio povo, na consagração de que o processo penal traduz instrumento garantidor de que a reação do Estado à prática criminosa jamais poderá constituir reação instintiva, arbitrária, injusta ou irracional.
Na realidade, a resposta do poder público ao fenômeno criminoso, resposta essa que não pode manifestar‐se de modo cego e instintivo, há de ser uma reação pautada por regras que viabilizem a instauração, perante juízes isentos, imparciais e independentes, de um processo que neutralize as paixões exacerbadas das multidões, em ordem a que prevaleça, no âmbito de qualquer persecução penal movida pelo Estado, aquela velha (e clássica) definição aristotélica de que o Direito há de ser compreendido em sua dimensão racional, da razão desprovida de paixão!
Nesse sentido, o processo penal representa uma fundamental garantia instrumental de qualquer réu, em cujo favor – é o que impõe a própria Constituição da República – devem ser assegurados todos os meios e recursos inerentes à defesa, sob pena de nulidade radical dos atos de persecução estatal.
O processo penal figura, desse modo, como exigência constitucional (“nulla poena sine judicio”) destinada a limitar e a impor contenção à vontade do Estado e à de qualquer outro protagonista formalmente alheio à própria causa penal.
O processo penal e os Tribunais, nesse contexto, são, por excelência, espaços institucionalizados de defesa e proteção dos réus contra eventuais excessos da maioria, ao menos, Senhor Presidente, enquanto este Supremo Tribunal Federal, sempre fiel e atento aos postulados que regem a ordem democrática, puder julgar, de modo independente e imune a indevidas pressões externas, as causas submetidas ao seu exame e decisão.
É por isso que o tema da preservação e do reconhecimento dos direitos fundamentais daqueles que sofrem persecução penal por parte do Estado deve compor, por tratar‐se de questão impregnada do mais alto relevo, a agenda permanente desta Corte Suprema, incumbida, por efeito de sua destinação institucional, de velar pela supremacia da Constituição e de zelar pelo respeito aos direitos que encontram fundamento legitimador no próprio estatuto constitucional e nas leis da República.
Com efeito, a necessidade de outorgar‐se, em nosso sistema jurídico, proteção judicial efetiva à cláusula do “due process of law” qualifica‐se, na verdade, como fundamento imprescindível à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito.
Nesse contexto, e jamais deixando de reconhecer que todos os cidadãos da República têm direito à livre expressão de suas ideias e pensamentos, torna‐se necessário advertir que, sem prejuízo da ampla liberdade de crítica que a todos é garantida por nosso ordenamento jurídico‐normativo, os julgamentos do Poder Judiciário, proferidos em ambiente de serenidade, não podem deixar‐se contaminar, qualquer que seja o sentido pretendido, por juízos paralelos resultantes de manifestações da opinião pública que objetivem condicionar o pronunciamento de magistrados e Tribunais, pois, se tal pudesse ocorrer, estar‐se‐ia a negar, a qualquer acusado em processos criminais, o direito fundamental a um julgamento justo, o que constituiria manifesta ofensa não só ao que proclama a própria Constituição, mas, também, ao que garantem os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil ou aos quais o Brasil aderiu.
De outro lado, Senhor Presidente, não constitui demasia rememorar antiga advertência, que ainda guarda permanente atualidade, de JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, ilustre Professor das Arcadas e eminente Juiz deste Supremo Tribunal Federal (“O Processo Criminal Brasileiro”, vol. I/8, 1911), no sentido de que a persecução penal, que se rege por estritos padrões normativos, traduz atividade necessariamente subordinada a limitações de ordem jurídica, tanto de natureza legal quanto de ordem constitucional, que restringem o poder do Estado, a significar, desse modo, tal como enfatiza aquele Mestre da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que o processo penal só pode ser concebido – e assim deve ser visto – como instrumento de salvaguarda da liberdade jurídica do réu.
É por essa razão que o processo penal condenatório não constitui instrumento de arbítrio do Estado. Ao contrário, ele representa poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Não exagero ao ressaltar a decisiva importância do processo penal no contexto das liberdades públicas, pois – insista‐se – o Estado, ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu, faz do processo penal um instrumento que inibe a opressão judicial e o abuso de poder.
Daí, Senhor Presidente, a corretíssima observação do eminente Professor ROGÉRIO LAURIA TUCCI (“Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro”, p. 33/35, item n. 1.4, 2ª ed., 2004, RT), no sentido de que o processo penal há de ser analisado em sua precípua condição de “instrumento de preservação da liberdade jurídica do acusado em geral”, tal como entende, também em preciso magistério, o Professor HÉLIO TORNAGHI (“Instituições de Processo Penal”, vol. 1/75, 2ª ed., 1977, Saraiva), cuja lição bem destaca a função tutelar do processo penal:
“A lei processual protege os que são acusados da prática de infrações penais, impondo normas que devem ser seguidas nos processos contra eles instaurados e impedindo que eles sejam entregues ao arbítrio das autoridades processantes.” (grifei)
Nesse contexto, Senhor Presidente, é de registrar‐se – e acentuar‐se – o decisivo papel que desempenha, no âmbito do processo penal condenatório, a garantia constitucional do devido processo legal, cuja fiel observância condiciona a legitimidade jurídica dos atos e resoluções emanados do Estado e, em particular, das decisões de seu Poder Judiciário.
O magistério da doutrina, por sua vez, ao examinar a garantia constitucional do “due process of law”, nela identifica, no que se refere ao seu conteúdo material, alguns elementos essenciais à sua própria configuração, dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis “ex post facto”; (f) direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a autoincriminação); (l) direito à prova; e (m) direito ao recurso.
Vê‐se, daí, na abordagem tradicional do tema, que o direito ao recurso qualifica‐se como prerrogativa jurídica intimamente vinculada ao direito do interessado à observância e ao respeito, pelo Poder Público, da fórmula inerente ao “due process of law”, consoante adverte expressivo magistério doutrinário (ROGÉRIO SCHIETTI MACHADO CRUZ, “Garantias Processuais nos Recursos Criminais”, p. 48/50, item n. 1.5, 2002, Atlas; VICENTE GRECO FILHO, “Tutela Constitucional das Liberdades”, p. 110, 1989, Saraiva; GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais”, p. 364/366, item n. 2.1.1, 2010, RT; ROGÉRIO LAURIA TUCCI, “Direito e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro”, p. 71/74, 2ª ed., 2004, RT, v.g.), valendo observar, ainda, que alguns autores situam o direito de recorrer na perspectiva da Convenção Americana de Direitos Humanos, como o faz GERALDO PRADO (“Duplo Grau de Jurisdição no Processo Penal Brasileiro: Visão a partir da Convenção Americana de Direitos Humanos em homenagem às ideias de Julio B. J. Maier” “in” “Direito Processual Penal: Uma visão garantista”, p. 105/119, 2001, Lumen Juris), ou, até mesmo, invocam, como suporte dessa prerrogativa fundamental, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a que o Brasil aderiu em 1992 (ANDRÉ NICOLITT, “Manual de Processo Penal”, p. 42/44, item n. 3.7.5, 2ª ed., 2010, Campus Jurídico).
Esses, portanto, Senhor Presidente, são o contexto normativo e as premissas que orientarão o meu voto a ser proferido em torno da controvérsia pertinente à subsistência, ou não, dos embargos infringentes nos processos penais originários instaurados perante esta Corte, na forma instituída e regulada no inciso I do art. 333 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Entendo, bem por isso, Senhor Presidente, assentadas as premissas que venho de referir, mostrar‐se de fundamental importância proclamar, sempre, que nada se perde quando se respeitam e se cumprem as leis e a Constituição da República, pois, como não se pode desconhecer, tudo se tem a perder quando a Constituição e as leis são transgredidas e desconsideradas por qualquer dos Poderes do Estado.
Antes de pronunciar‐me, Senhor Presidente, sobre a questão pertinente à admissibilidade, ou não, dos embargos infringentes, entendo necessário relembrar, até mesmo para o específico efeito de explicitar o alcance do julgamento que se está a realizar, que a teoria geral dos recursos, ao tratar da utilização do sistema recursal, destaca a existência de 02 (dois) momentos distintos referentes a qualquer recurso (ordinário ou extraordinário) que venha a ser interposto.
No contexto dessa ordem ritual, o primeiro momento a ser considerado impõe ao Poder Judiciário a formulação de um juízo prévio (positivo ou negativo) de admissibilidade da espécie recursal utilizada, que constitui, precisamente, a fase que ora se examina neste caso. Prematuro discutir, por isso mesmo, neste primeiro momento, o mérito subjacente ao recurso em questão. Uma vez admitido (e conhecido, portanto) o recurso interposto, será ele, então, submetido a regular processamento, para, alcançada a segunda fase, poder o Tribunal examinar‐lhe o pedido central, ou seja, apreciar o mérito da causa.
Torna‐se claro, desse modo, que o juízo de mérito sobre a acusação criminal (a ocorrer somente em momento ulterior) nada tem a ver, na presente fase processual, com o juízo (meramente preliminar) de admissibilidade do recurso.
Somente após superado, positivamente, esse estágio inicial, em que se analisam, tão somente, os pressupostos recursais (objetivos e subjetivos), é que se examinará, uma vez ouvida a parte contrária (o Ministério Público, no caso), o fundo da controvérsia penal, vale dizer, o próprio mérito do recurso!
O Supremo Tribunal Federal, neste instante, ainda se acha no primeiro momento, ou seja, ainda examina se o recurso interposto é cabível ou não! Essa, pois, é a questão a ser resolvida.
Sob tal perspectiva, e adstringindo‐me ao contexto normativo ora em exame, tenho para mim, Senhor Presidente, na linha do voto que proferi, em 02/08/2012, no julgamento de questão de ordem que havia sido então suscitada pelo eminente Revisor desta causa, que ainda subsistem, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, nas ações penais originárias, os embargos infringentes a que se refere o art. 333, inciso I, do Regimento Interno desta Corte, que não sofreu, no ponto, derrogação tácita ou indireta em decorrência da superveniente edição da Lei nº 8.038/90, que se limitou a dispor sobre normas meramente procedimentais concernentes às causas penais originárias, indicando‐lhes a ordem ritual e regendo‐as até o encerramento da instrução probatória, inclusive, para, a partir daí, submeter o julgamento ao domínio regimental, abstendo‐se, no entanto, em silêncio eloquente, típico de lacunas normativas conscientes, voluntárias ou intencionais (NORBERTO BOBBIO, “Teoria do Ordenamento Jurídico”, p. 144, 1989, Polis/Ed.UnB), de regular o sistema de recursos internos já extensamente disciplinado em sede regimental.
Ao reconhecer a viabilidade jurídico‐processual de utilização, nesta Suprema Corte, dos embargos infringentes em matéria processual penal, salientei que a garantia da proteção judicial efetiva acha‐se assegurada, nos processos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal, não só pela observância da cláusula do “due process of law” (com todos os consectários que dela decorrem), mas, também, pela possibilidade que o art. 333, inciso I, do RISTF enseja aos réus, sempre que o juízo de condenação penal apresentar‐se majoritário.
Referi‐me, então, no voto por mim proferido, à previsão regimental de utilização, nos processos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal, dos “embargos infringentes”, privativos do réu, porque somente por este oponíveis a decisão “não unânime” do Plenário que tenha julgado “procedente a ação penal”.
Cabe registrar, no ponto, que a norma inscrita no art. 333, n. I, do RISTF, embora formalmente regimental, qualifica‐se como prescrição de caráter materialmente legislativo, eis que editada pelo Supremo Tribunal Federal com base em poder normativo primário que lhe foi expressamente conferido pela Carta Política de 1969 (art. 119, § 3º, “c”).
É preciso ter presente que a norma regimental em questão, institutiva de espécie recursal nominada, embora veiculasse matéria de natureza processual, revelava‐se legítima em face do que dispunha, então, o art. 119, § 3º, “c”, da Carta Federal de 1969 (correspondente, na Carta Política de 1967, ao art. 115, parágrafo único, alínea “c”), que outorgava ao Supremo Tribunal Federal, como já anteriormente mencionado, poder normativo primário, conferindo‐lhe atribuição para, em sede meramente regimental, dispor sobre “o processo e o julgamento dos feitos de sua competência originária ou recursal (...)” (grifei).
Vê‐se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal, no regime constitucional anterior, dispunha, excepcionalmente, de competência para estabelecer, ele próprio, normas de direito processual em seu regimento interno, não obstante fosse vedado aos demais Tribunais judiciários o exercício dessa mesma prerrogativa, cuja prática – considerado o sistema institucional de divisão de poderes – incumbia, exclusivamente, ao Poder Legislativo da União (RTJ 54/183 – RTJ 69/138, v.g.).
Essa excepcional competência normativa primária permitiu ao Supremo Tribunal Federal prescrever, em sede formalmente regimental, normas de caráter materialmente legislativo (RTJ 190/1084, v.g.), legitimando‐se, em consequência, a edição de regras como aquela consubstanciada no art. 333, inciso I, do RISTF.
Com a superveniência da Constituição promulgada em 1988, o Supremo Tribunal Federal perdeu essa extraordinária atribuição normativa, passando a submeter‐se, como os demais Tribunais judiciários, em matéria processual, ao domínio normativo da lei em sentido formal (CF, art. 96, I, “a”).
Em virtude desse novo contexto jurídico, essencialmente fundado na Constituição da República (1988) – que não reeditou regra com o mesmo conteúdo daquele preceito inscrito no art. 119, § 3º, “c”, da Carta Política de 1969 –, veio o Congresso Nacional, mesmo tratando‐se de causas sujeitas à competência do Supremo Tribunal Federal, a dispor, uma vez mais, em plenitude, do poder que historicamente sempre lhe coube, qual seja, o de legislar, amplamente, sobre normas de direito processual.
E foi precisamente no exercício dessa atribuição constitucional que o Congresso Nacional editou, com inteira validade, diplomas legislativos como aqueles consubstanciados, por exemplo, na Lei nº 8.038/90, na Lei nº 8.950/94 e, também, na Lei nº 9.756/98, posto que cessara, “pleno jure”, com o advento da Constituição de 1988, a excepcional competência normativa primária que permitira a esta Suprema Corte, sob a égide da Carta Política de 1969 (art. 119, § 3º, “c”), prescrever normas de direito processual relativamente às causas incluídas em sua esfera de competência.
Não se trata, portanto, de discutir se a prescrição regimental reveste‐se de maior eficácia, ou não, que a regra legal no plano hierárquico‐normativo, porque essa matéria há de ser analisada em função do que estabelece a Constituição, que claramente separa e distingue dois domínios: o da lei e o do regimento interno dos Tribunais. Vale dizer, há que se examinar o tema à luz de dois critérios: o da reserva constitucional de lei, de um lado, e o da reserva constitucional de regimento, de outro. O eminente Ministro PAULO BROSSARD, em um de seus luminosos votos proferidos neste Tribunal (ADI 1.105‐MC/DF), bem equacionou o problema resultante da tensão normativa entre a regra legal e o preceito regimental, chamando a atenção para o fato – juridicamente relevante – de que a existência, a validade e a eficácia de tais espécies normativas hão de resultar do que dispuser o próprio texto constitucional:
“Em verdade, não se trata de saber se a lei prevalece sobre o regimento ou o regimento sobre a lei. Dependendo da matéria regulada, a prevalência será do regimento ou da lei (JOSÉ CELSO DE MELLO FILHO, Constituição Federal Anotada, 1986, p. 368; RMS 14.287, ac. 14.VI.66, relator Ministro PEDRO CHAVES, RDA 87‐193; RE 67.328, ac. 15.X.69, relator Ministro AMARAL SANTOS, RTJ 54‐183; RE 72.094, ac. 6.XII.73, relator ANTONIO NEDER, RTJ 69‐138). A dificuldade surge no momento de fixar as divisas entre o que compete ao legislador disciplinar e o que incumbe ao tribunal dispor. O deslinde não se faz por uma linha reta, nítida e firme de alto a baixo; há zonas cinzentas e entrâncias e reentrâncias a revelar que, em matéria de competência, se verificam situações que lembram os pontos divisórios do mundo animal e vegetal. (…).
O certo é que cada Poder tem a posse privativa de determinadas áreas. (…).
Alega‐se que a matéria é processual e por lei há de ser regulada. A assertiva envolve um círculo vicioso: dá‐se como certo o que devia ser demonstrado. A recíproca é verdadeira. Também não basta afirmar que o assunto é regimental para que seja regulado pelos tribunais, com exclusão do legislador. No caso vertente, cuida‐se de saber se estava na competência do legislador interferir no ato do julgamento ou se a Constituição o reservou ao Poder Judiciário, mediante norma regimental. Esta a questão.
A propósito, vale reproduzir esta passagem de JOSÉ FREDERICO MARQUES, ‘A votação dos regimentos internos é um dos elementos da independência do Poder Judiciário, diz PONTES DE MIRANDA, ‘porque, se assim não acontecesse, poderiam os legisladores, com a aparência de reorganizar a justiça, alterar a ordem dos julgamentos e atingir a vida interna dos tribunais’. (…) O Supremo Tribunal Federal, em julgamento memorável, firmou essa diretriz, fulminando de inconstitucional a Lei nº 2.790, de 24 de novembro de 1956, que reformava o art. 875 do Código de Proc. Civil, para admitir que as partes interviessem no julgamento depois de proferido o voto do relator. Como disse, na ocasião, o ministro EDGAR COSTA, a citada lei contrariava frontalmente ‘a própria autonomia interna dos tribunais, no que diz respeito à sua competência privativa para estabelecer as normas a seguir na marcha dos seus trabalhos, através dos seus regimentos, que, por preceito constitucional (art. 97, nº II), lhes cabe, livre da interferência de outros poderes’.
(…).’
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Insisto no que me parece fundamental. A questão não está em saber se o regimento contraria a lei ou se esta prevalece sobre aquele; a questão está em saber se, dispondo como dispôs, o legislador podia fazê‐lo, isto é, se exercitava competência legítima ou se, ao contrário, invadia competência constitucionalmente reservada aos tribunais; da mesma forma, o cerne da questão está em saber se o Judiciário, no exercício de sua competência legislativa, se houve nos seus limites ou se os excedeu.” (grifei)
Em suma, Senhor Presidente, é a própria Constituição que delimita o campo de incidência da atividade legislativa, vedando ao Congresso Nacional a edição de normas que visem a disciplinar matéria que a Constituição reservou, com exclusividade, à competência normativa dos Tribunais.
Foi por tal razão que o Supremo Tribunal Federal, em face dessa precisa delimitação material de competências normativas resultante da discriminação constitucional de atribuições, julgou inconstitucionais regras legais que transgrediram a cláusula de reserva constitucional de regimento, por permitirem, p. ex., a sustentação oral, nos Tribunais, após o voto do Relator (ADI 1.105/DF), em julgamento que se apoiou em antigo precedente desta Corte, que declarara a inconstitucionalidade, em 30/11/56, da Lei federal nº 2.970, de 24/11/56 (“Lei Castilho Cabral”).
Na realidade, a reserva constitucional de regimento transforma o texto regimental em verdadeira “sedes materiae” no que concerne aos temas sujeitos ao exclusivo poder de regulação normativa dos Tribunais.
Essa posição jurídica do regimento interno na veiculação instrumental das matérias sujeitas ao estrito domínio normativo dos Tribunais foi bem ressaltada por THEMÍSTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, que, enfatizando a impossibilidade de ingerência do Poder Legislativo no regramento dessas mesmas questões, observou que os órgãos do Judiciário, ao editarem os seus regimentos internos, “exercem uma função legislativa assegurada pela Constituição, restritiva da função exercida pelo Poder Legislativo” (“A Constituição Federal Comentada”, vol. II/312, 1948, Konfino).
A mesma visão doutrinária do tema é compartilhada por JOSÉ FREDERICO MARQUES (“Nove Ensaios Jurídicos”, p. 83/84, 1975, Lex Editora), que, em texto monográfico intitulado “Dos Regimentos Internos dos Tribunais”, observa:
“É que, tirando da própria Lei Maior a sua força de regra imperativa, o regimento não está vinculado à lei formal naquilo que constitua objeto da vida interna do Tribunal. No campo do ‘ius scriptum’, tanto a lei como o cânon regimental ocupam a mesma posição hierárquica. A lei não se sobrepõe ao regimento naquilo que a este cumpre disciplinar: ‘ratione materiae’ é que a Lei e o Regimento se distinguem, no plano das fontes formais do Direito Objetivo.
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Como bem explica o ministro MÁRIO GUIMARÃES, o regimento interno, que ʹé a lei interna do Tribunalʹ, tem por escopo regular ʹo que ocorre e se processa portas a dentroʹ, tal como se dá com os regulamentos do Poder Legislativo. Por isso mesmo, os tribunais ʹpodem legislar sobre a organização de seu trabalho, pois que essa é matéria regimentalʹ.
E conclui:
‘Não há dizer que a lei prevalece sobre o regimento. Lei e regimento têm órbitas distintas. Dentro de suas áreas respectivas, soberanos o são, respectivamente, o Legislativo e o Judiciário.’” (grifei)
Da mesma forma, esta Suprema Corte, ao julgar a Representação nº 1.092/DF, Rel. Min. DJACI FALCÃO, declarou inconstitucionais determinadas prescrições constantes do Regimento Interno do Tribunal Federal de Recursos, por entender que a instituição, por aquela Corte judiciária, do instrumento processual da Reclamação, viabilizada em sede meramente regimental, ofendia a cláusula da reserva constitucional de lei formal (RTJ 112/504‐567).
A norma inscrita no art. 333, inciso I, do RISTF, contudo, embora impregnada de natureza formalmente regimental, ostenta, desde a sua edição, como precedentemente por mim enfatizado, o caráter de prescrição materialmente legislativa, considerada a regra constante do art. 119, § 3º, “c”, da Carta Federal de 1969.
Com a superveniência da Constituição de 1988, o art. 333, n. I, do RISTF foi recebido, pela nova ordem constitucional, com força, valor, eficácia e autoridade de lei, o que permite conformá‐lo à exigência fundada no postulado da reserva de lei.
Não se pode desconhecer, neste ponto, que se registrou, na espécie, com o advento da Constituição de 1988, a recepção, por esse novo estatuto político, do mencionado preceito regimental, veiculador de norma de direito processual, que passou, a partir da vigência da nova Lei Fundamental da República, como já assinalado, a ostentar força, valor, eficácia e autoridade de norma legal, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 147/1010, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – RTJ 51/278 ‐ 279 , Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 190/1084, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
O fenômeno da recepção, bem o sabemos, assegura a preservação do ordenamento infraconstitucional existente antes da vigência do novo texto fundamental, desde que com este guarde relação de estrita fidelidade no plano jurídico‐material, em ordem a garantir a prevalência da continuidade do direito, pois, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, “a Constituição, por si só, não prejudica a vigência das leis anteriores (...), desde que não conflitantes com o texto constitucional (…)” (RTJ 71/289‐293).
Esta Suprema Corte, fazendo aplicação do mecanismo da recepção, proclamou permanecerem válidas e eficazes as regras ordinárias anteriores à Constituição, “desde que não contrastantes com os seus princípios e normas, ou com o seu espírito” (RTJ 77/657‐659).
É certo que falece, agora, ao Supremo Tribunal Federal o poder de derrogar normas regimentais veiculadoras de conteúdo processual, pois estas – porque consubstanciadoras de prescrições materialmente legislativas – somente poderão ser alteradas mediante lei em sentido formal, observado, em sua elaboração, o devido processo legislativo, tal como disciplinado no texto da vigente Constituição da República. Não foi por outra razão que o então Presidente Fernando Henrique Cardoso, acolhendo Exposição de Motivos subscrita pelo Ministro da Justiça Iris Rezende e pelo Ministro‐Chefe da Casa Civil da Presidência da República Clovis Carvalho, encaminhou, pela Mensagem nº 43/98, projeto de lei ao Congresso Nacional, propondo alterações legislativas no Código de Processo Civil, na Consolidação das Leis do Trabalho e na Lei nº 8.038/90.
Uma das propostas veiculadas em referido projeto de lei (que tomou o nº 4.070/98 na Câmara dos Deputados) consistia na pretendida abolição, pura e simples, dos embargos infringentes em todas as hipóteses previstas no art. 333 do RISTF, como decorria do art. 7º de mencionada proposição legislativa, que possuía o seguinte teor:
“Art. 7º Acrescentam‐se à Lei nº 8.038, de 1990, os seguintes artigos, renumerando‐se os subseqüentes:
Art. 43. Não cabem embargos infringentes contra decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal.” (grifei)
As razões subjacentes ao projeto de lei em questão, invocadas pela Presidência da República para justificar a proposta de extinção dos embargos infringentes contra acórdãos do Plenário do Supremo Tribunal Federal, foram assim explicitadas pelos Ministros de Estado subscritores da Exposição de Motivos:
“Seguindo na mesma esteira de desafogamento dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário, o acréscimo de novo art. 43 à Lei nº 8.038/90 visa à redução dos embargos infringentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal, uma vez que as matérias que são levadas ao Plenário já são de tal relevância, que os debates verificados para a fixação de posicionamento da Corte raramente ensejariam a revisão de posturas por parte daqueles que já se pronunciaram a favor ou contra as teses veiculadas em recursos ou ações apreciadas em Plenário.” (grifei)
Essa proposta do Poder Executivo da União, contudo, não foi acolhida pela Câmara dos Deputados, que se apoiou, para rejeitar a pretendida extinção dos embargos infringentes no Supremo Tribunal Federal, nas razões apresentadas, “em voto em separado”, pelo então Deputado Federal Jarbas Lima, que assim justificou a manutenção dos embargos infringentes no sistema recursal validamente instituído por esta Suprema Corte no art. 333 de seu Regimento Interno:
“5 ‐ Sugere‐se, por fim, a supressão da proposta de criação do art. 43 na Lei nº 8.038/90, constante no artigo 3º do substitutivo. Isso porque a possibilidade de embargos infringentes contra decisão não unânime do plenário do STF constitui importante canal para a reafirmação ou modificação do entendimento sobre temas constitucionais, além dos demais para os quais esse recurso é previsto. Perceba‐se que, de acordo com o Regimento Interno da Suprema Corte (artigo 333, par. único), são necessários no mínimo quatro votos divergentes para viabilizar os embargos. Se a controvérsia estabelecida tem tamanho vulto, é relevante que se oportunize novo julgamento para a rediscussão do tema e a fixação de um entendimento definitivo, que depois dificilmente chegará a ser revisto. Eventual alteração na composição do Supremo Tribunal no interregno poderá influir no resultado afinal verificado, que também poderá ser modificado por argumentos ainda não considerados ou até por circunstâncias conjunturais relevantes que se tenham feito sentir entre os dois momentos. Não se afigura oportuno fechar a última porta para o debate judiciário de assuntos da mais alta relevância para a vida nacional.” (grifei)
É importante assinalar que esse entendimento foi aprovado pelo Plenário da Câmara dos Deputados, que assim rejeitou a pretendida abolição dos embargos infringentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal, em votação que teve o apoio dos Líderes do PSDB, do PMDB, do PT, do PTB, do PPS, do PPB e do PFL.
O Senado Federal, por sua vez, aprovou o texto oriundo da Câmara dos Deputados, fazendo‐o com pequenas alterações, que sequer cuidaram do tema pertinente à abolição dos embargos infringentes. Em decorrência da aprovação bicameral da proposição legislativa referida, resultou promulgada, mediante sanção presidencial, a Lei nº 9.756, de 17/12/98, que “Dispõe sobre o processamento de recursos no âmbito dos tribunais”.
Vê‐se, portanto, que a questão pertinente aos embargos infringentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal constitui, agora, sob a égide da vigente Constituição, matéria que se submete, por inteiro, à cláusula de reserva constitucional de lei formal, cabendo ao Poder Legislativo, por tratar‐se de típica questão de política legislativa, a adoção de medidas que eventualmente possam resultar, até mesmo, na supressão definitiva dos embargos infringentes no âmbito interno do Supremo Tribunal Federal.
Matéria “de lege ferenda”, portanto!
Tais observações, contudo, não descaracterizam a legitimidade constitucional da norma inscrita no art. 333, I, do RISTF, pois, como anteriormente enfatizado, essa prescrição normativa foi recepcionada pela vigente ordem constitucional (RTJ 147/1010 – RTJ 151/278‐279 – RTJ 190/1084, v.g.), que lhe atribuiu força e autoridade de lei, viabilizando‐lhe, desse modo, a integral aplicabilidade por esta Suprema Corte.
É por isso que entendo, não obstante a superveniente edição da Lei nº 8.038/90, que ainda subsiste, com força de lei, a regra consubstanciada no art. 333, I, do RISTF, plenamente compatível com a nova ordem ritual estabelecida para os processos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal.
O fato, Senhor Presidente, é que não se presume a revogação tácita das leis, especialmente se se considerar que não incide, no caso ora em exame, qualquer das hipóteses configuradoras de revogação das espécies normativas, na forma descrita no § 1º do art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Com efeito, a regulação normativa veiculada no novo estatuto legislativo não abrangeu a totalidade da disciplina inerente ao processo penal originário no Supremo Tribunal Federal, mesmo porque a Lei nº 8.038/90, ao instituir “normas procedimentais para os processos que específica, perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal”,
limitou‐se, no plano da persecução penal originária, a dispor sobre a ordem ritual do respectivo procedimento até a conclusão da fase de instrução probatória (art. 12), relegando ao domínio regimental a normação concernente ao próprio julgamento da causa penal.
Na realidade, o diploma legislativo em questão, embora pudesse fazê‐lo, absteve‐se de disciplinar o sistema recursal interno do Supremo Tribunal Federal, o que representou, na perspectiva do § 1º do art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a preservação do conteúdo eficacial da regra inscrita no inciso I do art. 333 do RISTF.
Esse silêncio do texto legal, tal como a ele me referi em passagem anterior deste voto, não é de ser equiparado a uma lacuna normativa involuntária (ou inconsciente), assim entendida aquela que decorre “de um descuido do legislador” (NORBERTO BOBBIO, “Teoria do Ordenamento Jurídico”, p. 144, 1989, Polis/Ed.UnB). Ao contrário, trata‐se de típica lacuna intencional (ou voluntária) do legislador ordinário, que, embora tendo presente a realidade normativa emergente do novo modelo constitucional, quis, conscientemente, deixar de regular a questão pertinente aos embargos infringentes, por entender desnecessário desarticular o sistema integrado de recursos fundado, validamente, no próprio Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Ao assim proceder, deixando de disciplinar, inteiramente, a matéria tratada no Regimento Interno desta Corte, o legislador não deu causa a uma situação de revogação tácita, implícita ou indireta do inciso I do art. 333 do diploma regimental, eis que – insista‐se – essa modalidade de revogação somente ocorre em 02 (duas) hipóteses: (a) quando a lei posterior for totalmente incompatível com a espécie normativa anterior e (b) quando a nova lei regular, inteiramente, a matéria de que tratava a legislação anterior.
Esse entendimento foi exposto, de maneira clara, pelo eminente Ministro HAMILTON CARVALHIDO, que integrou o E. Superior Tribunal de Justiça, e que, ao discorrer sobre o tema, acentuou que a Lei nº 8.038/90 não extinguiu os embargos infringentes previstos no art. 333, inciso I, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Eis, no ponto, a valiosa lição desse eminente magistrado e antigo Chefe do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro:
“Cuida‐se de norma regimental, que reproduz norma regimental anterior, e antecedeu à Constituição de 1988, com a qual se harmoniza plenamente, em especial com a sua disciplina dos direitos fundamentais, fazendo‐se indiscutível a sua recepção pela nova ordem constitucional. E foi recepcionada como norma materialmente legislativa, eis que editada pelo Supremo Tribunal Federal no exercício da competência para disciplinar o processo e o julgamento dos feitos de sua competência originária ou de recurso, que lhe foi atribuída, com exclusividade, pela Emenda Constitucional 1, de 1969.
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A questão, enquanto pura de Direito, não se submete a critérios outros que não os que se pode extrair da Lei de 22 Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que, no seu artigo 2º, parágrafo 1º, preceitua a revogação da lei anterior pela posterior, quando a lei nova expressamente o declare; quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (Decreto Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942).
Sendo essa a lei de regência do conflito de normas no tempo, a solução da questão é a da declaração positiva da vigência da norma regimental anterior, qual seja, a do cabimento dos embargos infringentes do acusado contra acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, quando condenatório e assentado por maioria contra, no mínimo, quatro votos divergentes.
É que a Lei 8.038/90 não revogou expressamente o artigo 333, inciso I, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal; nada dispõe em contrário à norma regimental e não disciplina inteiramente nem o processo da ação penal originária, nem taxativamente os recursos da competência do Excelso Pretório.
Com efeito, primeiro, a Lei 8.038/90, no seu artigo 44, revogou expressamente apenas os artigos 541 a 546 do Código de Processo Civil de 1973, e a Lei 3.396, de 2 de junho de 1958, referentes os primeiros aos recursos extraordinários e especial e a última aos artigos 863 e 864 do Código de Processo Civil de 1939 e 622 a 636 do Código de Processo Penal. Segundo, quanto ao Supremo Tribunal Federal e aos recursos da sua competência, apenas disciplinou o recurso extraordinário, assim nada dispondo em contrário ao artigo 333, inciso I, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Por fim, tratou tão somente da fase de conhecimento do processo da ação penal originária e o fez não completamente, pois que também se remete ao Regimento do Tribunal, com vistas à disciplina do julgamento da causa.
Não é diverso o entendimento do Supremo Tribunal Federal, como exsurge, por todos, do voto condutor do acórdão no Agravo Regimental nos Embargos Infringentes no Habeas Corpus 77.664/SP, da lavra do ilustre ministro Carlos Velloso, relator, ‘verbis’: ‘no Supremo Tribunal Federal, os embargos infringentes são cabíveis da decisão não unânime do Plenário (…), que julgar procedente a ação penal (…), sendo certo que, tratando‐se de decisão do plenário, o cabimento dos embargos infringentes depende da existência, no mínimo, de quatro votos divergentes (RI/STF, art. 333, e seu Parágrafo Único)’.
É de se afirmar, portanto, a vigência da norma regimental que prevê os embargos infringentes como recurso oponível a acórdão condenatório não unânime, do Pleno do Supremo Tribunal Federal, com divergência de pelo menos quatro votos.
Trata‐se, como convém averbar em remate, o artigo 333, inciso I, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, de norma do devido processo legal, garantia individual, titularizada por todos os membros da Sociedade Civil, de observância absoluta, pena de irreparável ofensa ao Pacto Social ele mesmo. A exceção, que o atinja, jamais será individual ou particular, mas, por força de natureza, coletiva e geral, gravíssima e permanente, enquanto ofensa aos direitos fundamentais, com comprometimento intenso da sua efetividade.” (grifei)
Enfatize‐se, portanto, e no que concerne aos embargos infringentes – cuja base normativa reside no art. 333, n. I, do RISTF –, que não se registrou, presente o próprio conteúdo da Lei nº 8.038/90, hipótese de incompatibilidade ou situação de inteira regulação normativa da matéria, o que torna absolutamente inaplicável ao caso ora em exame a regra inscrita no art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Subsiste, portanto, íntegra a regra consubstanciada no inciso I do art. 333 do RISTF, considerada a circunstância – juridicamente relevante – de que a Lei nº 8.038/90 não operou, no contexto mais amplo dos processos penais originários instaurados perante esta Suprema Corte, revogação global ou sistêmica da matéria.
E, como se sabe, quando tal ocorre, passam a coexistir, em relação de plena harmonia jurídica, diplomas normativos impregnados de conteúdo temático próprio, valendo rememorar a lição do eminente Professor ALFREDO BUZAID (“Estudos de Direito”, vol. I/200‐201, item n. 18, 1972, Saraiva), saudoso Ministro desta Suprema Corte que, ao examinar o sentido da cláusula constitucional que deferiu, em 1967/1969, poder normativo primário ao Supremo Tribunal Federal em matéria processual, enfatizou, com a reconhecida autoridade de haver sido um dos mais brilhantes jurisconsultos deste País, que referida atribuição legitimava a instituição, por este Tribunal, em sede regimental, de recursos pertinentes às matérias sujeitas à sua competência:
“O Supremo Tribunal Federal legisla, nas matérias de sua competência, através do ‘regimento interno’. (…). Este preceito outorgou ao Supremo Tribunal Federal a atribuição privativa para estabelecer o processo e o julgamento, bem como os recursos nos casos de sua competência originária (…). Em uma palavra, o regimento tem o valor de lei.” (grifei)
De outro lado, há a considerar, ainda, um outro aspecto que tenho por pertinente no exame da controvérsia ora em julgamento e que se refere ao fato de que a regra consubstanciada no art. 333, inciso I, do RISTF busca permitir, ainda que de modo incompleto, a concretização, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, no contexto das causas penais originárias, do postulado do duplo reexame, que visaria amparar o direito consagrado na própria Convenção Americana de Direitos Humanos, na medida em que realiza, embora insuficientemente, a cláusula convencional da proteção judicial efetiva (Pacto de São José da Costa Rica, Art. 8º, n. 2, alínea “h”).
A adoção do critério do duplo reexame nos julgamentos penais condenatórios realizados pelo Supremo Tribunal Federal, possibilitando a utilização dos embargos infringentes na hipótese singular prevista no art. 333, inciso I, do RISTF, permitirá alcançar solução, não obstante limitada, nos casos em que o Supremo Tribunal Federal, atuando originariamente como instância judiciária única, proferir, por votação majoritária, julgamentos penais desfavoráveis ao réu.
Na realidade, não se pode deixar de reconhecer que os embargos infringentes, tais como instituídos no inciso I do art. 333 do RISTF, mostram‐se insuficientes à plena realização de um direito fundamental assegurado pela Convenção Americana de Direitos Humanos (Artigo 8º, n. 2, “h”) e que consiste na prerrogativa jurídico‐processual de o condenado “recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”.
Esse direito ao duplo grau de jurisdição, consoante adverte a Corte Interamericana de Direitos Humanos, é também invocável mesmo nas hipóteses de condenações penais em decorrência de prerrogativa de foro, decretadas, em sede originária, por Cortes Supremas de Justiça estruturadas no âmbito dos Estados integrantes do sistema interamericano que hajam formalmente reconhecido, como obrigatória, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação do Pacto de São José da Costa Rica.
Não custa relembrar que o Brasil, apoiando‐se em soberana deliberação, submeteu‐se à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que significa – considerado o formal reconhecimento da obrigatoriedade de observância e respeito da competência da Corte (Decreto nº 4.463/2002) – que o Estado brasileiro comprometeu‐se, por efeito de sua própria vontade político‐jurídica, “a cumprir a decisão da Corte em todo caso” de que é parte (Pacto de São José da Costa Rica, Artigo 68).
“Pacta sunt servanda”...
Com efeito, o Brasil, no final do segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso (Decreto nº 4.463, de 08/11/2002), reconheceu como obrigatórias a jurisdição e a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção” (Pacto de São José da Costa Rica, Artigo 62), o que legitima o exercício, por esse importante organismo judiciário de âmbito regional, do controle de convencionalidade, vale dizer, da adequação e observância, por parte dos Estados nacionais que voluntariamente se submeteram, como o Brasil, à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana, dos princípios, direitos e garantias fundamentais assegurados e proclamados, no contexto do sistema interamericano, pela Convenção Americana de Direitos Humanos.
É importante ter presente, no ponto, o magistério, sempre autorizado, dos eminentes Professores LUIZ FLÁVIO GOMES e VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI, cuja lição, no tema, a propósito do duplo grau de jurisdição no sistema interamericano de direitos humanos, notadamente após a Sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Barreto Leiva vs. Venezuela, vale rememorar:
“As duas exceções ao direito ao duplo grau, que vêm sendo reconhecidas no âmbito dos órgãos jurisdicionais europeus [europeus!], são as seguintes: (a) caso de condenação imposta em razão de recurso contra sentença absolutória; (b) condenação imposta pelo tribunal máximo do país. ([1]) Mas a sistemática do direito e da jurisprudência interamericana é distinta. Diferentemente do que se passa com o sistema europeu, vem o sistema interamericano afirmando que o respeito ao duplo grau de jurisdição é absolutamente indispensável, mesmo que se trate de condenação pelo órgão máximo do país. Não existem ressalvas no sistema interamericano em relação ao duplo grau de jurisdição.
A Corte Interamericana não é um tribunal que está acima do STF, ou seja, não há hierarquia entre eles. É por isso que ela não constitui um órgão recursal. Porém, suas decisões obrigam o país que é condenado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. ‘Pacta sunt servanda’: ninguém é obrigado a assumir compromissos internacionais.
Depois de assumidos, devem ser cumpridos.
De forma direta, a Corte não interfere nos processos que tramitam num determinado Estado membro sujeito à sua jurisdição (em razão de livre e espontânea adesão), porém, de forma indireta, sim. (…).
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No caso ‘Barreto Leiva contra Venezuela’, a Corte, em sua decisão de 17.11.09, apresentou duas surpresas: a primeira é que fez valer em toda a sua integralidade o direito ao duplo grau de jurisdição (direito de ser julgado duas vezes, de forma ampla e ilimitada) e a segunda é que deixou claro que esse direito vale para todos os réus, inclusive os julgados pelo Tribunal máximo do país, em razão do foro especial por prerrogativa de função ou de conexão com quem desfruta dessa prerrogativa.
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A obrigação de respeitar o duplo grau de jurisdição deve ser cumprida pelo Estado, por meio do seu Poder Judiciário, em prazo razoável. De outro lado, também deve o Estado fazer as devidas adequações no seu direito interno, de forma a garantir sempre o duplo grau de jurisdição, mesmo quando se trata de réu com foro especial por prerrogativa de função.
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De outro lado, quando o julgamento acontece na Corte Máxima, a única interpretação possível do art. 8º, II, ‘h’, da CADH, é que este mesmo tribunal é o competente para o segundo julgamento. Foi isso que determinou a CIDH no caso ‘Barreto Leiva’.
Quando não existe outro juiz ou Corte ‘superior’, é a mesma Corte máxima que deve proceder ao segundo julgamento porque, no âmbito criminal, nenhum réu jamais pode ser tolhido desse segundo julgamento (consoante a firme e incisiva jurisprudência da CIDH).” (grifei)
Nem se diga que a soberania do Estado brasileiro seria oponível à autoridade das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando proferidas no exercício de sua jurisdição contenciosa.
A questão central, neste tema, considerada a limitação da soberania dos Estados (com evidente afastamento das concepções de JEAN BODIN), notadamente em matéria de Direitos Humanos, e a voluntária adesão do Brasil a esses importantíssimos estatutos internacionais de proteção regional e global aos direitos básicos da pessoa humana, consiste em manter fidelidade aos compromissos que o Estado brasileiro assumiu na ordem internacional, eis que continua a prevalecer, ainda, o clássico dogma – reafirmado pelo Artigo 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, hoje incorporada ao ordenamento interno de nosso País (Decreto nº 7.030/2009) –, segundo o qual “pacta sunt servanda”, vale dizer, “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”, sendo‐lhe inoponíveis, consoante diretriz fundada no Artigo 27 dessa mesma Convenção de Viena, as disposições do direito interno do Estado nacional, que não poderá justificar, com base em tais regras domésticas, o inadimplemento de suas obrigações convencionais, sob pena de cometer grave ilícito internacional.
Essa compreensão do tema – notadamente em situações como a ora em exame em que o Supremo Tribunal Federal se vê dividido na exegese de um dado preceito normativo – permite realizar a cláusula inscrita no art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que confere, no domínio de interpretação dos direitos e garantias fundamentais, primazia à norma mais favorável, consoante tem enfatizado a própria jurisprudência desta Suprema Corte (HC 90.450/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):
“HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: A NORMA MAIS FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A INTERPRETAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. ‐ Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar‐lhe a mais ampla proteção jurídica. ‐ O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem‐se palavras vãs.
‐ Aplicação, ao caso, do Artigo 7º, n. 7, c/c o Artigo 29, ambos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): um caso típico de primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano.” (HC 96.772/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
É de observar‐se, ainda, por relevante, que, opostos os embargos infringentes, “serão excluídos da distribuição o Relator e o Revisor” (RISTF, art. 76), o que permitirá, até mesmo, uma nova visão sobre o litígio penal ora em julgamento.
Cabe relembrar, neste ponto, considerado o fato de que os embargos infringentes permitirão, embora de modo pontual, porque limitados ao objeto da divergência, uma nova visão sobre a controvérsia penal, a observação de PONTES DE MIRANDA (“Comentários ao Código de Processo Civil”, tomo VII, p. 330 e 339, 1975, Forense) no sentido de que essa modalidade recursal, ainda que havida por inconveniente por alguns processualistas, pode, no entanto, servir à causa da Justiça, como o revela esse eminente jurisconsulto brasileiro ao justificar a razão de ser dos embargos infringentes:
“Os melhores julgamentos, os mais completamente instruídos e os mais proficientemente discutidos são os julgamentos das Câmaras de embargos. (…) muita injustiça se tem afastado com os julgamentos em grau de embargos.
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O interesse precipuamente protegido pelo art. 530 do Código de 1973 não é o ndividual. É o interesse público em que haja a mais completa aplicação de todas as leis que presidiram à formação das relações jurídicas, isto é, de todas as leis que incidiram.”
Cabe assinalar, finalmente, que a existência de votos vencidos qualifica‐se como pressuposto necessário para a admissibilidade dos embargos infringentes, pois, como ninguém o ignora, a finalidade dessa espécie recursal consiste em fazer prevalecer, no rejulgamento da causa – limitado, topicamente, ao objeto da divergência –, a solução preconizada pela corrente minoritária.
É de indagar‐se, neste ponto, para efeito de utilização dos embargos infringentes contra acórdão não unânime do Supremo Tribunal Federal, na hipótese prevista no art. 333, inciso I, do RISTF, se a corrente minoritária deve compor‐se de 04 (quatro) votos vencidos ou, então, se se revela suficiente a existência de apenas 01 (um) voto divergente.
O eminente Ministro GILMAR MENDES formulou indagação relevante a propósito da questão pertinente aos votos vencidos. Por que 4 (quatro) votos vencidos e não 3 (três), 2 (dois) ou apenas 1 (um)? Entendo que essa questão mereceu adequada análise pelo eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, que, em julgamento nesta Corte, de que foi Relator (HC 71.124/RJ), após haver destacado o descabimento de embargos infringentes criminais contra decisão condenatória não unânime, nos processos de competência originária dos Tribunais em geral, “salvo no Supremo Tribunal Federal”, bem justificou a razão de ser da exigência mínima de 04 (quatro) votos vencidos, salientando que esse número – bastante expressivo em um Tribunal com apenas 11 (onze) integrantes (tanto que quatro votos, nas Turmas, compõem a maioria) – revela‐se apto a evidenciar, sem qualquer dúvida, a plausibilidade jurídica da pretensão deduzida pela parte embargante:
“Resta a invocada analogia da hipótese com as tratadas no Regimento Interno do Supremo Tribunal, que tanto admite os embargos infringentes contra a decisão que ‘julgar improcedente a revisão criminal’ (art. 333, III), quanto contra aquela que ‘julgar procedente a ação penal’ (art. 333, I), atualmente, desde que haja quatro votos vencidos (a ressalva do art. 333, parág. único, quando se tratasse de julgamento criminal em sessão secreta, que se contentava em que a decisão não fosse unânime, perdeu o objeto com o art. 93, IX, da Constituição).
É curioso observar que a admissão dos embargos infringentes contra decisão das ações penais originárias, no âmbito do Supremo Tribunal, desde o art. 194 do velho Regimento (CORDEIRO DE MELLO, ‘ob. cit.’, II/832): muito anterior, portanto, a que EC 16/65 e as cartas constitucionais subsequentes outorgassem hierarquia de lei ordinária ao regimento interno da Corte. Não obstante, estou em que a singularidade se explica pela posição do Supremo Tribunal na cúpula da estrutura judiciária nacional (...).
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Em contraposição, os acórdãos em processos originários do Supremo Tribunal são de única e última instância, não apenas no acertamento dos fatos, mas também na aplicação do direito: donde, a construção da abertura da via dos embargos, ao menos para as hipóteses em que o número de votos divergentes no seio da Corte emprestar probabilidade significativa de êxito à súplica do reexame do caso.
Nessa linha de raciocínio, é significativo que a L. 8.038/90 ‐ que cuidou das ações penais originárias, de competência do Supremo e do Superior Tribunal de Justiça ‐ não haja cogitado de transportar, para o último, a regra de admissibilidade dos embargos infringentes, que, por força do regimento, aqui subsiste. (...).
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Finalmente, impressiona o argumento das informações de que, suposto ser o caso de aplicação analógica, a exigência de quatro votos vencidos, de grande peso no conjunto de onze juízes do STF, não poderia ser transplantada para o âmbito de colegiados muito mais numerosos (...) sem que antes se procedesse à devida adequação da proporcionalidade.” (grifei)
Concluo o meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê‐lo, peço vênia para dar provimento ao presente “agravo regimental”, admitindo, em consequência, a possibilidade de utilização, no caso, dos embargos infringentes (RISTF, art. 333, inciso I), desde que existentes, pelo menos, 04 (quatro) votos vencidos, acompanhando, por tal razão, a divergência iniciada pelo eminente Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO.
É o meu voto.
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