terça-feira, 19 de maio de 2009

CARLOS LEITE DE ARAÚJO


Houve um tempo em nossa Pátria – e este tempo ainda está próximo da nossa memória, bem como jamais há de ser olvidado da consciência nacional – em que o povo foi muito perseguido, a liberdade derramou lágrimas e o direito foi enclausurado na masmorra do terror.

Homens e mulheres tivemos que, malgrado as trevas, atravessaram essa cavernosa fase e saudaram com mãos límpidas e fronte altiva o raiar do sol. Seres que se mantiveram com a alma pura como os córregos de água cristalina ou os perfumados mufumbos sertanejos em pleno maio invernoso. Figuras que, mesmo cortadas até o tronco, como canafístulas poderosas ficaram só o toco e rebentaram para voltar a recompor a compleição verdejante.

Pois bem, de uma “Várzea do Toco”, no município de Independência, aportou no ano de 1962 em Crateús um cidadão que se tornaria um desses ícones do movimento popular local: Carlos Leite de Araujo. Popularmente: “Carlos Nobre” ou “Carrim”.

Criado no universo da roça, descobriu desde cedo a invisível legislação da Natureza: milagres existem! Ele próprio é um exemplo disso: aprendeu a ler sem escola, sob a orientação do pai, um professor sem diploma. Autodidata, fez curso de relojoeiro e abraçou a profissão que garantiu a própria afirmação e da família.

Homem de sólida crença, logo se engajou no Movimento Eclesial de Base (MEB) que eclodia nos sertões de Crateús sob a animação do profético bispo Dom Fragoso, com quem se identificou desde a implantação da Diocese em 1964.

À medida que o regime ditatorial se consolidava, rareavam os seus opositores. Só os íntimos do destemor, os que se alimentavam da seiva do idealismo verdadeiro, se mantinham firmes no combate. Eram tempos sombrios, sob o albergue da clandestinidade, em que o medo povoava mentes e o sonho das liberdades públicas parecia inatingível. Trincheira de resistência, à Diocese de Crateús acorriam os mais expressivos nomes da inteligência libertária nacional. No entanto, aos olhos do poder o bispo era persona non grata: soldados faziam plantão na Praça da Igreja para vigiar quem entrava e saía na sede do bispado.

Freqüentador assíduo das reuniões eclesiais e líder de destaque no movimento de bairros, Carrim sentiu em certa ocasião o impacto da tortura psicológica: a Polícia Federal foi buscá-lo na sua Relojoaria e o submeteu a um longo interrogatório, de nítido caráter intimidatório. Perguntas como ‘Você faz parte da equipe paroquial?’, ‘Em que se baseia o trabalho da Igreja?’, ‘De onde o bispo recebe dinheiro?’ – fizeram parte da longa sessão que culminou com “conselhos” de tonalidade imperativa: ‘Afaste-se dos padres! É perigoso continuar perto deles!’

Essas adversidades apenas sedimentavam em Carlos Nobre a clara certeza de que palmilhava a vereda certa. E isso o aproximava cada vez mais de D. Fragoso, aquele pastor audacioso que abria as portas dos templos e as comportas da barragem religiosa para os despossuídos e espoliados, valentes de esperança e mansos de coração. Mergulhou fundo naquele caudaloso leito que misturava fé e política como componentes da mesma fórmula pascal.

Irmanado com pessoas como Manoel Balbino, Cícero Roma, Daniel, Ana Maria e Pedro Calixto, dentre muitos outros, passa a pingar fermento na massa e fomentar a ativação de uma entidade que estava parada: a Frente Social Cristã – que até hoje se constitui no principal espaço de congregação das organizações de bairro de Crateús. Através de mutirões, sedes foram construídas para a realização de eventos. Essa federação de bairros foi o carro-chefe de muitas lutas por moradia e trabalho, pão e paz. Além, é claro, da ativa participação em todas as manifestações que sacudiram o País e marcaram o sepultamento do arbítrio, como a Anistia e as Diretas Já. Nesses momentos indeléveis, sempre exercitou a veia poética e produziu memoráveis cordéis.

Indicado pelos companheiros de luta, por duas vezes (em 1982 e 1988) Carlos Leite tentou representar os bairros na Câmara Municipal. Apesar de enfrentar interesses poderosos, o que lhe obstaculou o êxito, obteve expressivas votações. Na Frente Social Cristã, entretanto, foi Presidente eleito e reeleito por vários mandatos – o que lhe rendeu certa vez o irônico apelido de “Presidente eterno”.

Do entrelaçamento matrimonial com Verônica Melo Araujo nasceram Luis Carlos, Paulo, Verbenia e Silvio – que já lhe deram 09 netos.

Apesar das mais de sete décadas de vida, continua no mesmo labor diário: acompanhando atentamente os ponteiros cívicos da vida da cidade e dando plantão no indefectível posto de trabalho: a pontual Relojoaria Grão-Duque! – nome que nos remete aos títulos de nobreza que eram usados, sobretudo na Europa Central e Oriental, para designar certos soberanos de estados independentes.

Que assim continues, Carrim, Independenciano que virou Crateuense, rebento do milagre da vida, bairrista da popular soberania, cultor da incondicional independência, vigilante da hora da verdade, nobre defensor do anseio comunitário!


(Por Júnior Bonfim. Publicado na edição de hoje da Gazeta do Centro Oeste e na Revista Gente de Ação)

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