sexta-feira, 28 de junho de 2013

CRATHEÚS AGUERRIDO


Os vespertinos raios do sol mal banham a superfície cristalina do Rio Poti quando este, repentino, muda de leste para o norte num fluir sinuoso, rumo ao paredão da Ibiapaba, delimitando o agreste palco dos Sertões de Cratheús.

O tablado dos acontecimentos históricos, ornamentado por galhos retorcidos de aroeiras, angicos, juazeiros e catingueiras, esquadrinhado pelos preás, tatus-bola e veados-catingueiros foi, e continua sendo, o lugar de épicos, comédias e tragédias de um povo aguerrido no seio da caatinga inóspita. Por aqui, sucederam-se grandiosas obras teatrais de fazer inveja aos gregos Ésquilo, Sófocles e Eurípides.

Desumanos Mestres-de-Campo são convidado por Francisco Garcia d'Ávila, proprietário da Casa da Torre, na Bahia, para aniquilar os índios, por toda essa região.

A expansão pastoril do Castelo da Torre não conhecia limites, com uma audaciosa ganância, às avessas ao mar, Domingos Jorge Velho e Diogo Afonso Sertão, dos Ávilas, vinham desbravando o Piauí. E os Kara-thi-us, de lanças e arcos nas mãos, não puderam combater os bacamartes de boca sino cuspindo raiva e fogo na rudimentar guerra de um agreste palco, configurando-se a primeira derrota do destemido sertão.

Apaziguado os ânimos dos gentios, vai surgindo, pouco a pouco, um povoado nas margens do rio das piranhas, seduzido pelo aromático estrume dos currais e pelo ecoar dos aboios a tanger o gado.

Do tronco da velha fazenda Piranhas, nas margens do Poti, esgalha-se a futura Vila Príncipe Imperial, esparsa e bucólica num esboço rústico, mas já exibindo cenas de um tumultuoso velho oeste, necessitando de periódicas intervenções dos emissários da arcaica cidade de Oeiras, nossa primeira capital. E já vibrava, pelas empoeiradas ruas, um DNA aguerrido das famílias Melo e Mourão, que duelavam entre si, a sangue e ferro, conclamando o duro pulso de uma força policial.

Foi tal qual uma Guerra interna, mas estendeu-se por pastagens longínquas, bem fora do nosso domínio, atraindo os olhares dos administradores da Província e os rancores Imperiais. Do alto de seu trono, Dom Pedro II ordenava ao Pe. José Martiniano de Alencar: - Acabem com a raça dos Mourões!

Era Alexandre da Silva Mourão IV, caráter belicoso, que atraía para si todas as atenções numa época de irrefreado cangaço. Quando não guerreava diretamente, usava a sabedoria de submeter o inimigo sem combate, que o diga o Tenente Felix Bandeira, com 40 soldados bem armados, cansou de percorrer as veredas dos sertões no encalço do ardiloso e desalmado cangaceiro, filho do célebre Alexandre II, que fizera parte da Batalha de Jenipapo enfrentando as tropas do português Fidié, que tinha pretensões de manter esta região sobre o domínio lusitano, surgindo assim, o Movimento Separatista de Oeiras. Uma manifestação genuinamente brasileira.

Foi no tempo em que, nos conflitos dos sertões bravios, os viris sertanejos ao falar em guerra, até as suas palavras tinham o peso do chumbo e a ligeireza das flechas. Como a capital Oeiras, Cratheús também proclamou uma independência dos domínios lusitanos, é o que afirma um trecho vago de um antigo documento: “O povo de Príncipe Imperial e Marvão, por pretenderem levá-lo ao criminoso Partido de Libertação, advertimos que não tendes proporções para a Independência. Falta-vos agricultura, arte, ciência, manufatura, comércio, dinheiro e, sobretudo, Exército e Marinha”

À sombra das ordens do Cel. João de Araújo Chaves, 300 homens dos Sertões de Crateús e Inhamuns, a 13 de março de 1823, juntaram-se as tropas de vaqueiros e roceiros do Piauí, para um combate feroz nos barrancos do Riacho Jenipapo, próximo à Vila de Campo Maior. Quando Dom Pedro I, às margens do Ipiranga, deu o grito de “Independência” não se derramou uma só gota de sangue, mas na sangrenta Batalha do Jenipapo, que assegurou a unidade territorial do Brasil, o combate foi brutal, causando a morte de mais de duzentos bravos sertanejos, toscamente armados com facões, espingardas socadeiras, foices e até mão de pilão, em cinco eternas horas de agonias, tempo que durou a malograda batalha e que foi uma vitória de Pirro para Fidié, derrotado logo em seguida, na vila de Caxias, no Maranhão.

O poeta da Itabira, Carlos Drummond de Andrade, em reconhecimento à ação dos combatentes independentes de jenipapo, imortalizou-os no poema “Cemitérios”: “No cemitério de Batalhão os mortos do Jenipapo / Não sofrem chuva nem sol; o telheiro os protege / Asa imóvel na amplidão campeira.”

A lendária vida dos rudes homens do cangaço, expulsos de suas terras, tostados pelo sol e amaldiçoados pelos sangue das almas que abateram, é um padecer sem fim. E Alexandre Mourão IV, o mais famoso cangaceiro dos Sertões dos Kara-thi-us, vê a oportunidade de se redimir dos inúmeros crimes com uma Revolução que se alastra no Maranhão, A Balaiada. Alista-se aos 200 soldados que sobem à Serra dos Tucuns sob o comando do Cap. Antônio José Luís de Oliveira, para ser absorvido de seus delitos e poder voltar a uma legalidade.

No Maranhão, os ricos fazendeiros, num sarneísmo antecipado da aristocracia rural, por conta de uma dura crise econômica impõem perversa fome e maus-tratos aos vaqueiros e escravos, que se incitam e começam uma revolução na terra em que nasceu e viveu o poeta Gonçalves Dias. O vaqueiro Raimundo Gomes, o balaieiro Manoel dos Anjos e o quilombola Cosme Bento emprestaram coragem, força, alma e sangue aos revoltosos balaios.

Em 1841, Alexandre Mourão IV, e alguns de seus parentes crateuenses, seguem uma tropa de 8 mil soldados, com farto armamento de guerra, para a Vila de Caxias, para lutar ao lado do Coronel Luiz Alves de Lima e Silva, aniquilando impiedosamente 12 mil pobres sertanejos, vaqueiros, agricultores e escravos e, com isso, o desumano Coronel Barrão foi premiado, passando a se denominar Duque de Caxias e o nosso herói cangaceiro retorna ao seu torrão, livre, puro e sem piedade, como um carcará que revoa pelo sertão!

Em tempo de guerras os homens viram tigres, dizem. E deve ser verdade, pois estávamos até no maior conflito armado da América do Sul: A guerra do Paraguai! Um estéril combate em que morreram mais soldados por doenças, fome e exaustão física do que propriamente pelas ação das balas. No livro, A retirada da Laguna de Visconde de Taunay, capítulo XIX em que fala da passagem do Rio Miranda, em cheia alta, lemos o feito heroico do soldado Damásio, um corajoso crateuense, quando tentavam passar quatro pesados canhões pelas correntezas do rio pantaneiro, sobre troncos de árvores, tracionados por cordas e polias. A primeira peça, passa tranquila, com estrepitosa aclamação dos soldados do outro lado. Já a segunda peça, escapou das amarras e caiu no fundo do rio. Leiam agora na própria “voz” de Taunay: “Um soldado, cujo nome merece ser recordado, Damásio, ofereceu-se imediatamente para mergulhar no ponto da imersão, e, tendo conseguido reconhecer o fundo, pode, após duas ou três emersões, para tomar fôlego, passar em torno da peça uma corda de que se provera e serviu para a puxar. Foi a lição aproveitada quanto aos cuidados tomados com a amarração das demais bocas de fogo e apressou o resto da operação, permitindo completar a passagem à tarde daquele dia e na manhã seguinte.” Desta guerra, conhecida também como o massacre dos meninos, nenhum pais envolvido teve algum proveito: O Paraguai com 100 mil mortos, entre soldados e crianças inocentes, ficou em ruina total, já o Brasil, com a fragilidade da estrutura militar exposta e 50 mil brasileiros mortos por doenças e pelos rigores de um clima!

Quando o beato cearense Antônio Conselheiro, espectro vivo a rezar ladainhas, liderava 20 mil sertanejos na comunidade de Canudos, na Bahia, o Exército Brasileiro tentou por três vezes aniquilá-los, na rústica arapuca de um arraial. De Belo Monte, que na realidade era um vale, o radical devoto dizia: - A República é materialização do reino do anticristo na terra. Quando, no dia 5 de outubro de 1897, a 4ª Expedição Militar disparou um tiro de canhão atingindo a torre da Igreja, os sertanejos que já sem água e sem comida e mesmo assim não se renderam, um crateuense estava lá! Francisco Lopes Ferreira Lima incorporado a um batalhão, viu o massacre de milhares de marginalizados do sertão nordestino. Presenciou quando um velho, uma criança e dois sertanejos, os últimos insurretos, ficaram honrosamente de pé, na frente de 5 mil soldados que rugiam como animais para o desfecho final da batalha e também viu quando os agarraram pelos cabelos, dobraram-lhes as cabeças, engargalando-lhes os pescoços e, francamente expostas suas gargantas, os degolaram.

Nos, Crateuenses, lutamos até na floresta Amazônica participando da conquista do território do Acre. Foi quando chegou por aqui, no início do século, o conterrâneo José Francisco da Silva que guerreou ao lado do Cel. Plácido de Castro, e trouxe a notícia da expulsão dos invasores bolivianos da região. O Acre é o Estado Brasileiro que todo dia 15 de junho, data da elevação à condição de estado, hasteia três bandeiras em seus pavilhões: a Brasileira, a do Acre e a do Estado do Ceará, em homenagem aos heróis cearenses-crateuenses que lutaram na Revolução Acreana. Podia hastear a bandeira crateuense, também!

Não fomos a 1ª Grande Guerra mundial, em 1914, chamada de Guerra das Trincheiras onde os soldados morriam se contorcendo como baratas pelos corrosivos gases mostarda e cloro. Mas em (des)compensação estivemos na Sedição de Juazeiro, um ano antes da seca do 15. Na remota década de 20, quando o menino Norberto Ferreira Filho não estava entregando pão da padaria de seu pai ou colocando água das cacimba do retiro, ficava ouvindo as conversas do velho sapateiro Moises Almeida que havia tomado parte na Revolta de Juazeiro do Norte, nos Sertões do Cariri, integrando as forças do Governo Federal que lutaram contra os jagunços de Floro Bartolomeu e do Padre Cícero Romão Batista. Ferreirinha aprendia a arte de Heródoto e ficou sabendo que o velho Moises havia perdido a guerra e que o excomungado Padim Cícero permaneceu como eminência parda na política cearense, com uma população de sertanejos venerando-o, feito santo, feito profeta.

Já na 2ª Grande Guerra estivemos em número bem maior, pois o Exército saiu a catar soldados, ou se ia para o fronte de batalha ou para a Guerra da Borracha, enfrentar animais perigosos e a maleita, no seio da Floresta Amazônica.

Os Expedicionários brasileiros-crateuenses foram incorporados às tropas americanas e ficaram entrincheirados nas encostas do Vale do Reno, em Monte Castelo, onde enfrentaram a 232ª Divisão de Infantaria Alemã, à temperatura de 10°C negativos e com neve até o peito. Ouviam, constantemente, os disparos dos inimigos e os estrondos das granadas que pipocavam ao lado. O herói crateuense, Francisco Bezerra Lima, o Chico da Doninha, entregador de água em jegue e amigo de Seu Ferreirinha, foi ferido duas vezes no eufêmico “Teatro de Operações” e recebeu um certificado de liberação, para ir para casa.

Os alunos do Instituto Santa Inês, tendo à frente a professora Madrinha Francisca, receberam o guerreiro cantando: “ Você sabe de onde eu venho? Das margens crespas dos rios, / Dos verdes mares bravios / Da minha terra natal. / Por mais terras que eu percorra, / Não permita Deus que eu morra / Sem que volte para lá; / Sem que leve por divisa / Esse "V" que simboliza / A vitória que virá: / Nossa vitória final, / Que é a mira do meu fuzil, / A ração do meu bornal, / A água do meu cantil, / As asas do meu ideal, /A glória do meu Brasil.” Foi uma grande festa para recepcionar um herói crateeuense!

Mas nem tudo são flores na vida de um ex-combatente, veterano de guerra. O Chico da Doninha, cidadão educado e tranquilo, não podia experimentar a danada da cachaça Lagoa do Barro. Quando chegava num bar, só ficava o dono com as pernas tremendo, atrás do balcão. Os vapores do álcool liberavam os pesadelos do “Teatro de Operações” e o coitado do Chico ouvia os gritos dos companheiros feridos e os estrondos das granadas. Então, como em Monte Castelo, desfechava tiros a torta e a direita e jogava facas afiadas ao encontro dos troncos das árvores.

O povo, que olhava das janelas entreaberta, penalizado dizia: - Coitado, pegou a maleita da guerra!

Certo fez o novorientense e crateuense Sargento Hermínio Aurélio Sampaio - que um dia, no prédio quadrado da atual prefeitura, atocaiou o bandoleiro Alexandre Mourão IV- ele resolveu se transformar em herói e na madrugada do dia "D" enfrentou as gargalhadas sinistras dos morteiros inimigos. Naquele fatídico dia, estava com uma pá na mão e preparava uma posição para um Fuzil Metralhador, sempre a gritar: "Precisamos avançar! Venham comigo!" Súbito, uma rajada certeira e mortífera o fulminou, ali tombou o Sargento Sampaio que não quis passar, como o Chico da Doninha, pelas maleitas de guerra nas ruas de sua cidade, resolveu permanecer na Itália, sepultado no cemitério de Pistola, onde estão os corpos dos membros da Força Expedicionária Brasileira. E pelos primeiros indômitos karatis que tombaram na árida caatinga, pela geração de Mourão de bacamarte na mão, pelo soldado Damásio, pelos Franciscos, pelos Moises, e por todos os outros extraordinários guerreiros crateuenses, damos vivas aos nossos heróis!

Raimundo Cândido

(A crônica “Cratheús Aguerrida” não se pretende alçar de rigidez histórica, mas seus dados podem ser comprovados nos livros: Fatos e Cousas do Passado e Coletâneas 1 e 2 de Norberto Ferreira Filho, Meus Avós de Raimundo Raul Correia Lima, Inhamuns, Terra e Homens de Antônio Gomes de Freitas, A retirada da Laguna de Visconde de Taunay e Diversos Documentos antigos de Crateús que estão no Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. E aos que me cobram precisão de fatos e épocas peço, se possível, que coloquem esta narrativa na gaveta dos pretensos textos literários.)

quinta-feira, 27 de junho de 2013

A FORÇA QUE VEM DO POVO

Cansado dos desgovernos
Instalados na nação,
O povo levou às ruas
A sua indignação,
Protestando e exigindo
O fim da corrupção.

Movimento Passe Livre
Protesta na hora certa,
O veemente reclamo
Deixa a nação em alerta
E o desejo de fazer
Outros protestos desperta.

A mobilização feita
Pelas redes sociais
Provocou efervescência,
Tornou-se forte e tenaz,
E mostrou o quanto a mídia
Eletrônica é eficaz.

Ao ouvir declarações
Dispersas, fiquei surpreso,
Pensei: esse movimento
É frágil, não é coeso,
Mas um leque de reclamos
Deu ao protesto mais peso.
Um cartaz expressa o caos
Instalado na política,
Outro, que a nação não cresce,
Parou, ficou paralítica,
Mas sempre a corrupção
É alvo da maior crítica.

Outros itens incomodam
E o Brasil todo protesta:
Nosso transporte é ruim,
A segurança, funesta,
A saúde, um mal crônico,
Nossa educação modesta.

Nas exigências da FIFA,
Qualquer ingênuo percebe
A clareza franciscana,
É dando que se recebe,
Tanta obra assim, ilícita,
Às claras, não se concebe.

Em tudo que a FIFA manda
Fazer, o Brasil investe,
Construindo estádio em tempo
Recorde, passou no teste,
Mas anda em ritmo de lesma
Qualquer obra no nordeste.
Quando o povo marcha unido,
Nem que chova canivete,
Faz florescer resultados,
Como exemplo, o delete
Aplicado com urgência
A tal PEC 37.

Esse despertar do povo
Deu ao povo confiança
Que os poderes se alinhem,
Reflitam, façam mudança...
Deu ao Brasil uma pauta,
E a gente, mais esperança!...

(Dideus Sales)

UTOPIA

“A utopia está lá no horizonte.

Me aproximo dois passos e ela se afasta dois passos.

Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.

Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.

Para que serve a utopia? Serve para isto:

para que eu não deixe de caminhar.”

(Fernando Birri, cineasta argentino)



(enviado por Boaventura Bonfim)

quarta-feira, 26 de junho de 2013

CONJUNTURA NACIONAL

Especial - uma visão geral da crise

Hoje, excepcionalmente, a Coluna terá como foco o movimento que abre um novo ciclo social/institucional no país. Está um pouco mais extensa. Pedimos compreensão das leitoras e leitores. Mesmo assim, vou abrir com uma historinha, como tem sido costume nesse espaço. Escolhi uma parábola que se aplica aos nossos governantes e políticos.

Não sabem que não sabem

"Há pessoas que não conseguem perceber o que se passa ao seu redor. Não vêem que não vêem, não sabem que não sabem". Pequeno relato. Zé caiu em um poço e está a 10 metros de profundidade. Olhava para os céus e não viu o buraco. Desesperado, começou a escalar as paredes. Sobe um centímetro e escorrega. Passou o dia fazendo tentativas. As energias começaram a faltar. No dia seguinte, alguém que passava pelo lugar ouviu um barulho. Olhou para o fundo do poço. Enxergou o vulto de Zé. Correu e pegou uma corda. Lançou-a no buraco. Concentrado em seu trabalho, esbaforido, cansado, Zé não ouve o grito da pessoa : "Pegue a corda, pegue a corda". Surdo, sem perceber a realidade, continua a tarefa de escalar, sem sucesso, as paredes. O homem na beira do poço joga uma pedra. Zé sente a dor e olha para cima, irritado, sem compreender nada. Grita furioso :

- O que você quer ? Não vê que estou ocupado ?

O desconhecido se surpreende e volta a aconselhar :

- Aí tem a corda, pegue-a, que eu puxo.

Mais irritado ainda, responde sem olhar para cima :

- Não vê que estou ocupado, ó cara. Não tenho tempo para me preocupar com sua corda.

E recomeça seu trabalho. Parábola: "Zé não vê que não vê, não sabe que não sabe". Os nossos governantes e políticos não perceberam a corda que a galera há tempos joga para que eles possam sair do fundo do poço. Não vêem que não vêem, não sabem que não sabem.

A travessia brasileira

As manifestações que ocorrem no país são diferentes dos eventos ocorridos em décadas passadas, quando se identificavam eixos e discursos centrais (Diretas Já, impeachment de Collor), lideranças e intensa participação da esfera política, por meio de partidos. Distingo três movimentos nos eventos:

1. A canoa atravessa o rio

Um pequeno grupo manobra a canoa no rio para atravessá-lo de um lado para outro. O nome da canoa : MPL - Movimento pelo Passe Livre. Composição dos canoeiros : estudantes. A intenção desejada : reduzir a tarifa de ônibus em SP. A canoa começou a abarrotar de gente. Todos queriam entrar na canoa e chegar à margem oposta.

2. A canoa se transforma em navio

O Movimento pelo Passe Livre, de maneira surpreendente e rápida, assume enorme proporção. A primeira movimentação junta, em torno do grupamento inicial de estudantes, setores variados : ativistas de movimentos em defesa de gêneros, de minorias étnicas e sexuais, funcionários públicos, pais de estudantes, comerciários, punks e anarquistas. A reivindicação básica - redução da tarifa de ônibus - dilui-se na massa discursiva que se ouve e se vê nas palavras de ordem e faixas levantadas pela multidão em passeata :

- contra a corrupção;

- contra a violência;

- contra os serviços precários de saúde;

- contra a deteriorada malha educacional;

- (ao lado de outras bandeiras - como maioridade penal, contra a criminalização do aborto, contra a PEC 37, etc.);

- altos custos dos estádios/dificuldade de acesso a eles.

3. Transatlânticos invadem os mares

A travessia se transforma, de repente, em gigantesca navegação em uma frota de transatlânticos que abrigam milhares de pessoas em mais de 100 capitais e cidades do país. Calcula-se que um milhão de pessoas participou da última manifestação, ocorrida semana passada. A movimentação apresentou algumas características :

- violência da PM no primeiro grande movimento, segunda-feira, dia 17; cenas de vandalismo e depredação de prédios públicos; destruição de carros de empresas jornalísticas;

- hoje, mais de uma semana depois, já chega a quatro mortes (três atropelados e uma gari que morreu de enfarte), além de centenas de feridos em muitas capitais e cidades;

- distanciamento dos grandes partidos políticos. Mesmo os pequenos partidos (de extrema esquerda) foram repelidos pela multidão;

- um discurso difuso - propostas genéricas no entorno da proposta central do MPL : redução de tarifas de ônibus;

- contingentes de classe média foram encorpados por contingentes de jovens da periferia. As massas se fundiram em um grande movimento sem lideranças tradicionais.

Surpresa

As esferas política e governamental foram tomadas de surpresa. Algumas razões estão por trás do susto. Alinho algumas :

- a falsa impressão de que o conforto econômico - mesmo sob ameaça de volta da inflação - apaziguava o país;

- a falsa impressão de que os jovens, descrentes da política, formam grupamentos amorfos, desinteressados e sem motivação para acorrer às ruas;

- a surpresa pela rapidez da formação dos contingentes; pouco se tinha ideia das condições de interatividade e mobilização propiciadas pelas redes eletrônicas da internet;

- a área política encheu-se de indagações : O que dizer ? O que fazer ? Como fazer ?

Gigante não estava adormecido

A ocupação das ruas de grandes e médios centros urbanos por multidões é algo inusitado na feição institucional. Por ocasião das Diretas Já e do Impeachment de Collor, as motivações eram claras e grandes lideranças puxavam as mobilizações. Depois do surto Collor, reaparecem as massas na rua. Ocorre a maior mobilização de toda a nossa história, fato que merece ampla reflexão por emergir como contraponto ao cenário de harmonia que se imaginava, até então. O que significa ? Reflete o fechamento de um ciclo de aceitação/passividade e sinaliza a abertura de um tempo de participação da sociedade, como um todo, no processo decisório.

Democracia direta

Sob certo aspecto, podemos falar da emergência de traços da democracia direta em contraposição à democracia representativa, em crise. O povo percebe que tem a força para fazer mudar as coisas. A redução do preço das passagens de ônibus foi o atestado mais evidente dessa capacidade. Geraldo Alckmin decide suspender também os aumentos do pedágio em SP. Tal percepção do povo funciona como fator de animação/disposição/animus animandi.

PNBIS

Além das causas acima enumeradas, qual o eixo que moveu a ampla movimentação ? Não há um, mas um conjunto de fatores. Podemos inseri-los dentro do que designo de Produto Nacional Bruto da Insatisfação Social (PNBIS), composto por mazelas nas seguintes áreas :

a) Corrupção generalizada;

b) Educação deteriorada;

c) Saúde em estado precário - estruturas inadequadas, ineficientes, obsoletas;

d) Violência em expansão nas médias e grandes cidades;

e) Sistema de mobilidade urbana locupletado;

f) Gastos excessivos em estádios de futebol;

g) Saturação com o modus operandi da velha política. Escândalos e denúncias.

Bolsa-cabeça

Sensação é a de que o ciclo do Bolsa-Barriga (que resulta do Bolsa-Família) está esgotado. Fecha-se. Estudantada de todos os lados quer um Bolsa-Cabeça. Um pacotão para embalar as grandes demandas populares.

Raiva e indignação

Essas áreas compõem a massa de negatividade / insatisfação / indignação que chega, rotineiramente, ao sistema cognitivo do cidadão comum. Para agravar o quadro, os avanços alcançados pela sociedade e a esperança de que o país abra novos capítulos sofrem reveses. (Veja-se, a propósito, a declaração do ministro Dias Toffoli, de que o mensalão poderia durar, ainda, dois anos. Um balde d'água fria na cabeça dos esperançosos brasileiros, que distinguiam o final do maior processo criminal julgado pela mais alta Corte do país).

Exuberância dos estádios

Além disso, os estádios desta Copa das Confederações aquecem fogueiras. Ouçam-se as vaias a Dilma e ao Joseph Blatter no Mané Garrincha, em Brasília, enquanto o MPL já estava nas ruas. A indignação continuou depois, com pancadaria feia entre polícia e manifestantes à frente dos estádios de Fortaleza, de Brasília e BH. A revolta contra a exuberância dos palácios futebolísticos certamente contribuiu para a indignação, sob pano de fundo do contraste com a miséria, falta de saúde, educação, moradia, segurança pública, etc.

Padrão FIFA

"Portugal construiu 10 estádios 'padrão FIFA' para a Eurocopa de 2004. Sete anos depois o país estava falido...10 estádios fatídicos que hoje apodrecem ao sol. A Grécia cometeu iguais loucuras para as Olimpíadas do mesmo ano. Teve a honra de falir primeiro". (João Pereira Coutinho, escritor português, cientista político, FSP, 25/6/2013)

O rastro de pólvora

A mobilização social conta com um formidável aparato comunicativo : as redes sociais. Que funcionam como o rastro de pólvora. Os participantes se comunicam, as palavras de ordem são disparadas e os comandos (quase anônimos) vão somando milhares de seguidores e militantes das causas patrocinadas. A mobilidade dos grupamentos é algo surpreendente, a denotar a existência de um novo ator no desenho da movimentação das massas : a internet.

Sem lideranças e discurso difuso

Chama a atenção a ausência de lideranças tradicionais ou mesmo novas, que tenham visibilidade ou marquem presença na galeria dos comandantes de grandes operações de massa. Essa é outra característica da movimentação social. Os discursos nem sempre são claros, mostrando que a vontade do manifestante de abrir a locução ou ir à rua é o que interessa. Essa situação tende a ser mais visível nas próximas etapas das movimentações, quando novas propostas serão encaminhadas e verbalizadas. O MPL, depois de anunciar que se retira do palco paulistano, por enxergar oportunismo por parte de parcelas e grupos políticos, voltou atrás e promete novas mobilizações.

Clarificação

Sejam quais forem os patrocinadores/mobilizadores, uma séria questão se imporá ao movimento : clarificar metas, objetivos e propostas para que as vozes não caiam no vazio. Na polifonia da Torre de Babel. Os políticos, por sua vez, não são bem vistos nas movimentações, como se viu nas ações de queima e rasgo de bandeiras partidárias. Mas em algum momento, a área política haverá de se fazer presente porque as coisas passam necessariamente pelos governantes do Executivo e pelos parlamentares do Poder Legislativo.

A fala da presidente

A fala da própria presidente Dilma se explica. Tinha de dizer que o país tem governo. Aceita as demandas da massa, mas repele a violência. Afinal, a ordem tem de ser mantida. Mas prometer o que ? Pacotes para a educação ? Quando serão implementados ? Médicos importados ? Convocar governadores e prefeitos para formação de um pacto nacional ? Tudo isso entra na onda verborrágica. A presidente parece perdida. Sob os apelos crescentes do Volta, Lula.

A propósito

Matéria da revista Veja traz importante revelação de que episódio de queima de pneus, em Brasília, teria o patrocínio de forças e quadros do PT, desejosos de por lenha na fogueira. A ABIN, por sua vez, não pescou nada na maré cheia de ondas turbulentas.

MPL : despreparada

Seis representantes do MPL foram convidados para uma conversa com a presidente. Após a conversa, o porta-voz do grupo abriu o verbo : a presidente é uma despreparada para debater e apresentar soluções concretas para a questão dos transportes públicos. Um bumerangue.

A galera

Urge atentar para a composição das galeras e turbas. Por enquanto, a composição dos contingentes nas ruas mostra os seguintes setores : estudantes, participantes de movimentos em defesa de minorias e igualdade de gêneros, pais de estudantes, funcionários públicos, punks, comerciários, anarquistas, desempregados, profissionais liberais, e, depois, incorporação de segmentos jovens das periferias. Estão fora desse circuito as categorias profissionais de trabalhadores, principalmente os setores abrigados nas Centrais Sindicais. A propósito, as Centrais falarão, hoje, com a presidente para apresentar sua pauta de reivindicações. Mas, para surfar na onda, já marcaram greve geral para o dia 11 de julho. Vai pegar ?

Os próximos passos

Para onde o movimento seguirá ? Quais serão os próximos passos ? Quais as bandeiras a serem erguidas nos próximos movimentos ? Algumas trilhas são enxergadas :

- A melhoria da qualidade dos serviços públicos; essa bandeira continuará a ser desfraldada.

- Os problemas relacionados às localidades. A pedra jogada no meio da lagoa tende a chegar às margens. As questões de zonas e regiões da capital e regiões do Estado entrarão nas pautas do movimento.

- Nos Estados e outras capitais, a tendência será a mesma. Dará vazão às demandas específicas de cada comunidade.

- A área política deverá entrar no circuito. As oposições vão buscar motivos para endurecer as críticas.

- O governo Dilma, por sua vez, já se mostra inclinado a arrumar um "Bolsa-Cabeça", alguns programas voltados para agradar aos jovens.

Slogan do momento

"Melhorar a Vida do Povo".

Fechando a coluna

A barafunda quase se instala nesses últimos dias. Fecho a coluna com a polêmica sobre o plebiscito para a Constituinte Exclusiva, no bojo da qual seria feita a Reforma Política.

Plebiscito

No intuito de tomar a dianteira e mostrar serviço, a presidente apresentou um pacotão de 5 pontos para responder ao anseio das galeras. O ponto polêmico foi a proposição para se realizar um plebiscito para ouvir a sociedade sobre uma Constituinte Exclusiva, que realizaria a reforma política. A polêmica se acendeu. Não é possível uma Constituinte para decidir sobre uma especificidade. Ministros do STF, juízes e a OAB se pronunciaram em contrário à ideia da presidente. Que acabou recuando.

A voz do vice presidente

Chamou a atenção o fato de o vice-presidente Michel Temer, um dos mais renomados constitucionalistas do país, não ter sido ouvido preliminarmente sobre a questão. Tivesse ouvido o vice-presidente, Dilma não teria passado pelo dissabor de ouvir as contrariedades à sua ideia. Michel acabou consertando o imbróglio. E deu a solução. Disse à presidente, por ocasião de uma reunião com a OAB, não existir na CF a figura de constituinte exclusiva para tratar de uma questão específica.

A proposta de Michel Temer

Propôs que ela encaminhasse ao Congresso uma mensagem solicitando que o Parlamento convocasse um plebiscito para auscultar o desejo do povo sobre as diversas questões que permeiam a política, do tipo : tipo de voto - distrital, distrital misto, proporcional; fim ou não das coligações proporcionais, coincidência das eleições, etc. Sairia o modelo de interesse da sociedade. A se realizar em agosto. Até 3 de outubro, esse modelo deveria ser aprovado para entrar em vigor já em 2014.

Conselho aos governantes

Esta coluna dedica sua última nota a pequenos conselhos a políticos, governantes, membros dos Poderes e líderes nacionais. Na última coluna, o espaço foi destinado aos políticos e governantes. Pelo momento que o país atravessa, continuaremos a dirigir a eles o conselho :

1. Procurem auscultar as demandas do povo. E passem do discurso à ação.

2. Evitem promessas que não podem ser cumpridas; falas de caráter demagógico.

3. Saibam ler os sinais de um novo tempo. Comunicação governamental ultrapassa a linha do marketing de glorificação. Requer interatividade e compromisso com as comunidades.

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(Gaudêncio Torquato)

terça-feira, 25 de junho de 2013

POLÍTICA & ECONOMIA NA REAL

Primeiro, a eleição, depois os fatos - 1

"O diabo nas ruas, no meio do redemunho" (João Guimarães Rosa, "Grande Serão Veredas")

A presidente Dilma Rousseff e seus conselheiros, formais e informais, demoraram mais de uma semana para perceber que o ruído que saía das ruas era muito distinto de um barulho como o das caxirolas que um dia, imprudentemente, ela resolveu tocar em pleno Palácio do Planalto com o músico baiano Carlinhos Brown. Era um barulho político, no seu melhor sentido. Quando o Planalto percebeu o que estava a ocorrer, depois das manifestações da segunda-feira da semana passada, tocou no diapasão errado. Em lugar de mobilizar seu governo para tentar entender o fenômeno e apresentar algumas respostas razoáveis às ruas, tentou em "caco" incluído num discurso sobre o Código de Mineração. Em seguida, partiu para SP para reunir-se com seu comitê eleitoral : o ex-presidente Lula, o ministro (nas horas vagas) da Educação, Aloizio Mercadante, o presidente do PT, Rui Falcão, e o ministro (sem pasta) de Assuntos de Propaganda, o marqueteiro João Santana. Não é, de modo algum, embora Lula palpite sobre tudo no governo de sua pupila, o grupo mais adequado para discutir as questões postas pelas ruas.

Primeiro, a eleição, depois os fatos - 2

Era óbvio que a preocupação, naquela altura, era com os estragos que as passeatas poderiam causar nos planos reeleitorais da turma. A turma reeleitoral ainda demorou mais dois dias - somente depois das agitações de mais de um milhão e meio de pessoas nas ruas na quinta-feira - para perceber a gravidade do problema. Para perceber que o que estava no ar, muito além das reivindicações pontuais, era uma completa condenação do modo de fazer política e de gerir a coisa pública no Brasil, sem distinções partidárias e de credos. Mais uma vez, porém, Dilma reagiu pelo lado errado. Foi certa, por óbvia, a decisão de fazer o chamado "pronunciamento à Nação". O dito foi apenas correto, protocolar. Mas, há ressalvas : (i) tenta passar, sem tanta sutileza, a maior responsabilidade pelo que não foi feito até agora e está sendo cobrado nas ruas para o Congresso Nacional, os governadores e os prefeitos ; (ii) como não acenou com propostas objetivas, o discurso pareceu um requentado do que está parado em algum lugar dos escaninhos públicos ou promessas de longa duração ou difícil aplicação.

Soluções para agora ?
Falar em reforma política no Brasil soa como tergiversação. Se nossa memória não nos falta, quem primeiro falou sobre o assunto foi Dom João VI. Por ora, basta ver o projeto que anda hoje no Congresso, melhor que não venha, pois está mais voltado para os interesses dos partidos e dos políticos do que da população. Será mais um entrechoque entre representantes e representados. Relembrar a proposta de destinar obrigatoriamente 10% dos royalties do pré-sal não traz soluções imediatas. Esses royalties vão demorar a entrar em grande quantidade nos cofres públicos. O dinheiro que pode entrar agora, como o pagamento pela concessão do campo de Libra, cujo leilão está previsto para outubro, vai ser reservado para ajudar a cumprir a meta de superávit primário deste ano. O mundo político, governo central à frente, parece não ter percebido que o movimento popular trazia em seu bojo um inescapável sentido de urgência. As respostas terão de ser rápidas. Há poucos meses, num discurso no Nordeste, a presidente Dilma disse que para se ganhar uma eleição era admissível "fazer o diabo". O diabo que está agora nas ruas, "no meio do redemunho" não é certamente o que ela pretendia despertar.

"É sempre uma questão eleitoral", por José Márcio Mendonça - clique aqui

"Perplexos, atônitos, bestializados", por José Márcio Mendonça - clique aqui

E agora, o pacto
No terceiro acorde (ou terceira reação) o tom ficou também abaixo do necessário. A proposta de um pacto de cinco pontos, feita depois de uma reunião com 27 governadores, 26 prefeitos de capital e um punhado de ministros e assessores foi aplaudida por quem já estava com as mãos prontas e coçando para bater palmas. As primeiras reações externas (deixe-se a oposição de lado) se não foram de ceticismo, foram de expectativa. Ficou-se ainda no terreno dos compromissos, das promessas. De nada que foi dito ficou-se sabendo o "como fazer". E de muita coisa nem bem o que se propôs de fato a fazer-se. A questão apresentada como o ponto central do pacto, o plebiscito para uma constituinte exclusiva para a reforma política, por exemplo : ficaram dúvidas sobre a viabilidade jurídica e sobre sua viabilidade política. E é desnecessária : o Congresso tem poder constituinte e o governo tem ampla maioria para aprovar o que bem entende por lá. Uma proposta dessas, mesmo que viável, jogaria a reforma somente para 2016 - ano que vem para eleger os constituintes, 2015 para aprová-la. E como as ruas mostraram, as questões postas na mesa são um pouco mais urgentes. O mesmo se pode dizer sobre o pacto fiscal, ou de ajuste fiscal. Ele já exista há anos, nas metas de superávit primário. Porém, de uns tempos para cá, deixou de ser cumprido de fato, maquiado por uma contabilidade altamente criativa. Até o BC tem sido cético em relação a ele em suas últimas manifestações oficiais, como na mais recente ata do Copom. Cumpri-lo é uma questão de convicção. Pacto nenhum obriga ninguém a fazê-lo. A pressa dos ministros escalados para explicar depois o que estava decidido, tentando livrar-se rapidamente dos repórteres no Palácio do Planalto, com respostas confusas e repetitivas, é o indicador mais claro de que o pacto de cinco pontos ainda está no terreno da comunicação apenas.

Sem respaldo da economia

Conforme já dissemos nas colunas das últimas semanas, o cenário econômico do Brasil piorou sensivelmente do ponto de vista das expectativas e observados alguns fundamentos. A economia está atolada num processo inercial de crescimento entre 2%-3% no máximo, fruto da ausência de competitividade sistêmica do país (custo de mão de obra, elevados impostos, incipiência tecnológica, educação ruim, criminalidade alta, etc.), da fraqueza estrutural do desenvolvimento industrial e da dissociação da pauta política e econômica. Além da palidez da equipe econômica, da Fazenda às empresas públicas, passando pelo Ministério do Planejamento e o BNDES. O cenário atual será caracterizado pela desvalorização do real (e seus consequentes efeitos inflacionários), por um crescimento do PIB próximo de 2%, por uma situação fiscal sem maiores riscos, mas com deterioração qualitativa das contas públicas e por uma política monetária relativamente dependente dos humores do Palácio do Planalto. Falta à política econômica credibilidade interna e externa.

Risco Brasil

Até agora não houve, da parte dos investidores, mudança substantiva na avaliação de risco soberano do Brasil em função das manifestações ocorridas na semana passada. Diante de tanta perplexidade em relação à evolução das manifestações públicas na semana passada é improvável que o risco país do Brasil sofra alterações no curto prazo, por parte das agências de avaliação de risco (rating agencies), mesmo porque o nível das reservas internacionais é satisfatório e a deterioração fiscal não implicou em um aumento substantivo do endividamento público. Todavia, a continuar o ambiente político conturbado, a preocupação dos investidores, sobretudo externos, haverá de influenciar decisivamente a visão das agências em relação ao Brasil. Note-se que, mesmo que as rating agencies estejam sob forte ceticismo desde a crise de 2008, a nota dada aos países tem forte influência sobre a avaliação do risco no mercado de títulos.

Risco China

Não é apenas o Brasil que está com o mercado acionário prejudicado. Quase todos os países emergentes estão com os seus mercados acionários com desempenho anual negativo. Esta conjuntura deve provavelmente se acentuar nos próximos meses em função da queda da atividade da economia chinesa. O BC daquele país está emitindo sinais claros de que está reduzindo os riscos na área de crédito do sistema financeiro, bem como está apertando a política monetária. De fato, tenta um "pouso suave", o que é sempre difícil de se realizar, pois as expectativas dos agentes acaba por "acelerar tendências" e não suavizá-las. O momento é particularmente de risco para a China e os emergentes não apenas por este motivo. Há, adicionalmente, a questão da transparência das contas públicas e dos bancos estatais chineses. Muitos analistas e investidores têm severas dúvidas sobre a credibilidade das autoridades chinesas no que tange a este tema. Mesmo que poucos se arrisquem a vir a público para discuti-lo. Medo das reações do regime comunista de Pequim.

Risco EUA

Foi a melhora substantiva dos indicadores macroeconômicos da maior economia do mundo que fez com que o presidente do FED anunciasse o fim dos (enormes) estímulos monetários usados para recuperar a economia norte-americana. A reação imediata dos diversos segmentos do mercado foi negativa. Ações caíram, títulos de renda fixa tiveram suas taxas majoradas e o dólar se fortaleceu. Efeitos de curto prazo à parte, são boas as chances da economia continuar se fortalecendo. Assim sendo, a queda das ações são oportunidade de compra. Para o Brasil o maior risco, conforme já analisamos em colunas das últimas semanas, é a valorização do dólar que põe combustível na inflação brasileira, mesmo que ajude no médio prazo as exportações.

Quando vai parar ?

É provável que os atuais movimentos arrefeçam a partir desta semana, exceção para algumas manifestações já marcadas. Não há fôlego para manter pessoas permanentemente mobilizadas. É a natural fadiga de materiais. Porém, há sinais de que a chama não se extinguirá tão facilmente por uma simples razão : o despertar, apesar de induzido pela campanha contra o aumento das tarifas de transporte urbano, teve várias motivações. Foi um grito (para lembrar um velho lema petista) contra "tudo que está aí". Portanto, pode voltar quando outras coisas desagradáveis entrarem no ar. E há um grande leque de "motivações" no gatilho : a conclusão do julgamento do mensalão, a PEC 37, uma proposta que tenta também submeter decisões do STF ao Congresso, manobras para diminuir os efeitos da lei da ficha limpa, a tentativa fisiológica de dificultar o nascimento de novos partidos... E, naturalmente, o mal estar com a economia.

O que fazer ?

De todas as respostas que o governo precisa dar ao clamor das ruas nenhuma é mais urgente que combater os desarranjos da economia. As questões políticas são um tanto quanto fluídas, embora mereçam atenção, a razão econômica é material. Se o ambiente econômico estivesse melhor, com a inflação mais comportada, se não houvesse um sentimento generalizado de medo de perda do poder de compra e consumo, talvez as manifestações das duas últimas semanas não tivessem ganhado as proporções que ganharam. A expectativa é saber como o governo vai atacar nesse front. Não foi sem razão que na esteira das passeatas, Brasília andasse povoada de boatos sobre possíveis alterações na equipe econômica, muito especificamente do ministro Guido Mantega. É improvável que Dilma, por tudo que se conhece dela, vá tomar uma atitude dessas. Mas a disseminação da boataria indica as dificuldades que o governo está tendo - e elas são anteriores aos movimentos populares - de dar respostas aos desarranjos que apareceram na política econômica.

"Menas", Lula, "menas"...
As confusões dos últimos dias, quando a presidente teve de correr a SP para se aconselhar mais uma vez com o ex-presidente Lula, mais uma vez comprova a "dependência" que Dilma tem. Não foi a primeira vez que Lula teve de dar a mão à pupila. Provavelmente, não será a última. Porém, Lula faz questão, direta ou indiretamente, de mostrar que esta "dependência" existe. Esta exibição de influência acaba por prejudicar a presidente, pois admitam os amigos dela ou não, enfraquecem a posição do Palácio do Planalto. E causam confusão. A conversa de Lula com o ex-presidente do BC, Henrique Meirelles, em plena efervescência das ruas, por exemplo, ajudou a alimentar os boatos da substituição de Guido Mantega no Ministério da Fazenda. Sem contar que o ex-presidente reuniu-se com os líderes das centrais sindicais para ouvir deles queixas contra o tratamento que recebem da presidente. Nada mais inoportuno. Sem contar que o Instituto Lula é também o desaguadouro das lamúrias petistas. Não é à toa que o coro de "volta Lula" está ficando mais encorpado. Para gosto do lembrado.

Um mar de especulações

Na onda de descontentamento da presidente Dilma com os percalços de seu governo na economia e em outros campos, como no Congresso, ampliados pela "voz rouca das ruas", Brasília está tomada por um vagalhão de especulações a respeito de uma reforma ministerial que ela fará em breve. A oportunidade seria o recesso do Congresso Nacional, a partir de 15 de julho (se os parlamentares aprovarem a lei de diretrizes orçamentárias para o Orçamento de 2014) e, naturalmente, o arrefecimento das manifestações populares. Afinal, reza um ditado da política nacional, governo não age pressionado. Uma bobagem, age sim. Haja vista, no caso Dilma, a série de demissões no início do governo levadas pelas denúncias de irregularidades envolvendo nada menos que sete ministros, todos devidamente mandados então para casa. Dilma aproveitaria a ocasião para tentar dar mais eficiência gerencial à sua administração, livrar-se de auxiliares pouco efetivos e melhorar sua interlocução com o Congresso e alguns setores da sociedade - agentes econômicos e movimentos sociais e sindicais. Dilma também anteciparia a saída de alguns ministros que em abril de 2014 devem sair para concorrer a governos estaduais. Imagina-se que 14 deles estariam na boca de espera. Inicialmente esta mudança está prevista para o fim do ano. Antecipada, Dilma já teria a equipe com que pretende terminar este mandato e lugar por mais quatro anos no Palácio do Planalto. A partir desse pano de fundo, há especulação para todos os gostos. O primeiro nome especulado é o do ministro Guido Mantega, da Fazenda, pela óbvia necessidade de o governo recuperar a confiança das chamadas classes produtoras e do dito mercado financeiro. Foi o que provocou os boatos da ida de Henrique Meirelles para o Ministério (ver nota acima). É improvável, por enquanto, ainda mais com Meirelles, mas ajustes na equipe econômica são bem viáveis. Há sinais de fumaça dando indicações de que Aloizio Mercadante, cada vez mais um assessor político e eleitoral da presidente e cada vez menos um ministro da Educação, poderia ser transferido para a Casa Civil, para melhorar a coordenação do governo e relações do Palácio com o Congresso e os partidos. Esta especulação já andou no ar no início do ano e é tudo que Mercadante quer. Gleisi Hoffmann voltaria ao Senado, onde assumiria uma das lideranças do governo, ou a do Senado ou a do Congresso, tidas como pouco eficientes. Ela ficaria com mais tempo também para preparar sua candidatura ao governo do PR. Dá-se também como possíveis beneficiários de um bilhete azul o secretário geral da presidência da República, Gilberto Carvalho e o chefe da ABIN, general José Milito. O primeiro por falhas na interlocução com os movimentos sociais e o segundo por falhas na detecção das insatisfações populares. O terreno é ainda de meras especulações, mas que há fumaça há e não de pneus queimados por manifestantes contra os aumentos de transportes ou contra os gastos com a Copa do Mundo.

Não viu quem não quis

A insatisfação contra o mundo político e burocrático que explodiu nas praças, ruas e avenidas nos últimos dias já estava latente há algum tempo e só não viu seus sinais quem não quis. Um deles foi dado nas eleições municipais de 2012, na qual tivemos um recorde de não votantes nos últimos anos no país : o total de votos brancos, nulos e abstenções (ou seja, de quem rejeitou todos os candidatos e partidos) chegou a quase 40% do eleitorado inscrito para votar. Outro dado : caiu para menos da metade, desde que esta possibilidade foi incluída em nossa legislação eleitoral, o número de jovens com idade entre 16 e 18 anos, que tiraram seu título de eleitor. Votar nesta idade é facultativo e o interesse deles diminuiu. Não é preciso perguntar a razão.

Silêncio constrangedor

Nunca se viu tanto tão falantes políticos calados como nesses dias, a começar pelo ex-presidente Lula que fala muito em gabinetes a portas fechadas. Os que se arriscaram, partiram para obviedades - ou bobagens. Mas nada mais constrangedor nesse quadro do que o silêncio da oposição, a mostrar que tanto quanto o governo em Brasília ela não esperava o que se passou e não sabe o que fazer.

Esqueçam o que eu escrevi

É comovente ver o esforço de um grupo de economistas de peso para reescrever o que disseram nos últimos tempos sobre a política econômica levada adiante nos últimos anos e para explicar porque ignoram sinais de que a inflação não era apenas um soluço, porque não viram a "contabilidade criativa" que minava a política fiscal e porque não perceberam que a política cambial estava matando a indústria, porque não sentiram que havia um exagero na política de crédito de fato e incentivo ao consumo e outras coisinhas mais...

por Francisco Petros e José Marcio Mendonça