quinta-feira, 3 de maio de 2012

BARROS PINHO NAS SESMARIAS DA SAUDADE





O grande Juarez Leitão - companheiro (no etimológico sentido de compartilhar o mesmo pão de vida e de poesia) de Barros Pinho - me enviou a bela Crônica, que adiante transcrevo, em louvor à memória do seu velho amigo de quatro décadas:



Na antífona com que abre o seu livro “Circo Encantado”, publicado em 1975, Barros Pinho anuncia a chegada do encantamento na vereda das águas/ na poeira do sol. E, ao fechar o livro, parte com o que restou do espetáculo: aqui vai o circo/trapézio quebrado/areia nos pés/palhaços na rua.

Agora, ainda sob o impacto de sua partida inesperada, tropeçamos nos destroços do ciclone emocional que caiu sobre nós. O circo encantado de sua poesia, o aconchego de sua convivência, sua visão crítica do mundo e os demais exercícios de inteligência com que nos brindava na tribuna do parlamento, na academia e na mesa do bar se espalham por todos os cantos da memória aflita e dolorosa de seus companheiros.

Quem era este homem-poeta? De que barro foi feito?

No poema “Viver não só para existir”, produzido aos 70 anos, se apresenta como “menino aprendiz do absurdo/embriagado no vinho da infância/a andar nos rios pelos caminhos do mar.”

Em muitas outras ocasiões de sua mágica, acesa e inventiva poesia se confessa, assim, um menino do rio, atravessado de saudades perenes e úmidas, que escorrem barrentas por dentro da alma. O rio é seu tudo, seu universo pânico e, em torno dele, constrói a peripécia de seu sonho, sua saga, seu roteiro. O Parnaíba, era um lençol de garça nos seus olhos e as suas águas viviam “a tocar flauta no dorso das formigas para o banquete das nuvens”.

Um dia, em 1958, no fulgor da adolescência e carregado de perplexidades, Zé Maria chegava ao Ceará. Vinha predestinado a fazer história.

Nesta terra foi líder estudantil, vereador, deputado estadual, prefeito da capital e secretário de cultura no estado e no município.

Convivemos por 40 anos em ofícios de política e literatura. A arte e o ideal nos fez irmãos. Fui seu companheiro de bancada na Câmara Municipal de Fortaleza pelo MDB, o valente MODEBRA, num momento cinzento da vida política nacional e, naquele parlamento, militamos nas trincheiras da oposição, ele, o líder do partido, eu, seu seguidor fiel em votos de defesa da cidade e de nossos sonhos de juventude. Estes mesmos sonhos, eternos e puros, que nos manteve meninos a vida toda caminhando nas pedras e nas noites para alcançar os fachos da aurora.
O destino foi generoso com o nosso poeta, porque, além de o dotar de muito talento e grande caráter, deu-lhe boas oportunidades de exercê-los. E quando todos o tinham como um bom professor e exímio poeta, surpreendeu por sua capacidade de gestor, um executivo operoso a gerar resultados positivos para a administração pública.

As funções de homem público nunca endureceram o espírito do poeta. Poeta sempre foi em todos os caminhos de sua existência frutificadora, em que viveu a semear palavras e ternuras para encantar as grandes solidões.

Como diz em seus versos, atravessou o tempo e os percalços da vida montado no cavalo Ventania ou na formosa e cúmplice burra Sabiá com o “pendão da cana fixo na retina” e todas aquelas valentias avoengas, qualidades e desculpas, a ternura das mães-pretas, a andeja vocação tabajara e a lubricidade incandescente herdada dos colonizadores da Ibéria.

Correu serelepe pela ribeira cheirosa do Parnaíba e pela “terra de serrotes ondulados de longas planícies preguiçosas.” Trouxe para a sua poesia todas as lembranças: a rua em que nasceu, uma missa de domingo na matriz de Nossa Senhora do Amparo, o circo da baianinha que “no trapézio machucava o coração da rua”.

Carregou no alforje lã de carneiro, labirintos e vagalumes. No bolso, “o sino de todas as igrejas”, no peito, “o lamento ensebado do carro de boi” e na meia o punhal dos Taiocas, instrumento clânico de prevenção e desabuso contra o atrevimento alheio.

Rei Mago, fervoroso e telúrico, trouxe para a literatura brasileira a estrela do natal e escreveu na palha morna e humilde da manjedoura o evangelho das abelhas. Tornou-se o arauto do Menino Jesus e o seu último e caprichoso evangelista. O encanto pelo natal foi o outro rio permanente de sua criação.

Barros Pinho nunca envelheceu e, por isso, não pode morrer. Cada encontro com sua poesia nos dará esperanças e utopias novinhas e nos mostrará o mesmo marinheiro afoito a domar mares e ventos, conquistando portos, horizontes e liberdades.

Sua franca e mágica viola ponteará, como Garcia Lorca, alegres canções ciganas. Seu gibão o vestirá no chão épico de Gerardo Mello Mourão e, como Manoel de Barros, reinventará o olhar das coisas e recriará os espantos.

E, assim, vivo e presente, continuará apalpando as contradições do mundo, esmerando-se na arte de despetalar sentimentos e transmitir o afeto generoso pela terra, pelo homem e pela dignidade humana. E, nos passos que deu e nas marcas que fez, continuará ensinando a sintaxe da paixão e tocando a flauta amorosa da memória.

Aqui, no país da saudade, a presença azul, imensamente azul, do menino Zé Maria, ribeirinho telúrico do rio Parnaíba, estará ordenando a vida e construindo novas e ardentes quimeras.


(Por Juarez Leitão)

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