sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

MORREU FERNANDO LYRA, O MINISTRO DA JUSTIÇA QUE ACABOU COM A CENSURA NO BRASIL



Adeus a Fernando Lyra, por Ricardo Noblat

Por três motivos o pernambucano Fernando Lyra garantiu seu lugar na história recente da política brasileira: a atuação como deputado federal durante a ditadura militar de 1964; o papel que desempenhou na eleição do presidente Tancredo Neves; e a autoria da frase mais corrosiva sobre o atual senador José Sarney. Comecemos pelo fim.

Então ministro da Justiça, enquanto o país ainda esperava que Tancredo recuperasse a saúde para assumir a presidência da República, Fernando foi designado por José Sarney, o vice no exercício da presidência, para anunciar o fim da censura. O Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, estava lotado para ouvir o anúncio.

Fernando sabia que a esmagadora maioria das pessoas ali reunidas tinha horror a Sarney, que apoiara a ditadura militar até quase o fim dela. Em tempo pulou para o barco de Tancredo. Como elogiar Sarney sem despertar a ira daquela multidão? Fernando encontrou a saída em meio ao discurso de improviso:

- O presidente José Sarney é a vanguarda do atraso.

Menos de um ano depois Sarney o demitiu.

A ditadura de 64 criou dois partidos: ARENA, da situação, e MDB, da oposição. A própria ditadura teve que convencer alguns políticos a se filiarem ao MDB. Corria-se o risco de não se obter o número mínimo de assinaturas para que o partido existisse.
Fernando entrou no MDB espontaneamente. Elegeu-se deputado estadual. E depois federal várias vezes. Fez parte do reduzido grupo de parlamentares que de fato se opôs à ditadura. Mais do que isso: desafiou-a denunciando a tortura e o desaparecimento de presos.

Diversas vezes, amigos de Fernando deram como certo sua cassação com a perda do mandato e dos direitos políticos. Fernando escapou da degola. E foi o primeiro deputado de esquerda a apoiar a candidatura presidencial de Tancredo.

O apoio foi dado antes da candidatura existir. Antes mesmo do próprio Tancredo cogitar dela. No dia da posse de Tancredo como governador de Minas Gerais em 1983, Fernando voou a Belo Horizonte sem ser convidado e sem avisar a nenhum dos seus colegas do MDB.

Até então, ele era da turma do deputado Ulysses Guimarães (SP), presidente do partido. E mantinha distância de Tancredo, tido como um moderado pouco confiável. Tancredo levou um susto quando o viu na solenidade de posse. Convidou-o para almoçar. E escutou dele:

- Estou aqui, Dr. Tancredo, para dizer que o senhor tem de ser candidato a presidente da República pelo MDB. Somente o senhor poderá vencer, pondo fim à ditadura.

- Mas Fernando, tudo o que sempre quis foi ser governador de Minas. E quando me elejo você vem falar em candidatura a presidente? - devolveu Tancredo.

A partir daquele dia, Fernando se ocupou em articular a candidatura de Tancredo, embora a princípio sem o aval dele.

- Tancredo me disse um dia: 'Fernando, você não pode pensar em eleição pela oposição sem o apoio da esquerda'. E eu perguntei quem ele considerava esquerda no Brasil. 'Francisco Pinto e Miguel Arraes. Tendo o apoio dos dois, eu tenho o apoio da esquerda'".

Chico Pinto era deputado federal pelo MDB da Bahia. Arraes, ex-governador de Pernambuco. Fernando convenceu os dois a apoiarem Tancredo. E ainda arrastou para o lado dele o resto da esquerda do MDB. Cabalou no PT o apoio de três deputados, depois expulsos do partido.

Sem o apoio da esquerda, Tancredo jamais teria renunciado ao governo de Minas para se aventurar a ser candidato a presidente.
Fernando foi obrigado pelos médicos a renunciar à política eletiva no final de 1998. Era cardiopata. Havia tido um infarto ainda jovem. Depois disso, em ocasiões distintas, ganhara um total de sete pontes safenas e uma mamária. Derrotou dois tumores malignos - um no intestino grosso, outro no pulmão.

- Eu não me entregarei fácil - disse-me um dia, há mais de 10 anos, depois de passar por mais uma revisão médica.
Prometeu e cumpriu.

Lutou mais uma vez contra a morte desde o dia cinco de janeiro passado, internado no Instituto do Coração, na capital paulista.

Nos últimos 20 dias foi posto em coma induzido. Dependia de aparelhos para seguir vivendo.

O aparelho de hemodiálise foi desligado na terça-feira. Segundo médicos que o atendiam, sobreviveria, no máximo, mais 48 horas. Sobreviveu quase 40. Seu amor pela vida só tinha um sério concorrente: seu amor pelo telefone.

- Quais são as novidades? - costumava perguntar.

Infelizmente, as novidades não são nada boas, Fernando. Perdi um grande amigo.



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AS MEMÓRIAS DO ESTADISTA

Raríssimos políticos, para não dizer nenhum, estiveram tão presentes nos grupos que compuseram as forças democráticas daquele momento, entre 1982 e 85. Alguns estavam mais próximos de Tancredo, outros de Arraes, de Brizola, outros de Ulysses. Fernando Lyra transitou em todos, embora de maneira privilegiada ao lado de Tancredo Neves.

Nenhum outro político esteve tão próximo do chamado grupo autêntico, nem teve a sensibilidade, a percepção, a coragem de ajustar a estratégia da eleição direta para a alternativa do Colégio Eleitoral, como caminho para acabar com a ditadura. Fernando Lyra entrou na história do Brasil como o primeiro líder do bloco autêntico que teve a percepção de reorientar a tática de luta sem mudar o objetivo central de redemocratizar o País. O que hoje, depois de ocorrido, nos parece uma evolução natural do processo, naquele momento parecia impossível e errado para muitos. Mas Fernando acreditou, ousou, construiu - e acertou.

Um belo exemplo para os dias de hoje, Fernando agiu movido por uma causa moral - a democracia –, com coragem de enfrentar preconceitos e capacidade política de fazer história, de reorientar os destinos do País, de fazer a revolução. A revolução da liberdade de expressão, da convocação de uma Constituinte livre e soberana, da livre organização partidária e do bom funcionamento da democracia. Além disso, teve competência para montar a articulação que permitiu reunir a maioria dos votos no Colégio Eleitoral.

Ele reuniu a percepção, a ousadia e a competência que caracterizam um estadista.

Só essa história já faz do livro “Daquilo que eu sei: Tancredo e a transição democrática” um documento fundamental para o entendimento da evolução política do Brasil. Mas ele não se resume a isso. Descreve detalhes até aqui desconhecidos, apresenta sutilmente perfis biográficos de grandes personagens daquele momento, mostra o drama dos dias seguintes à doença de Tancredo Neves e o encaminhamento no governo Sarney.

Como se não bastasse, é um livro muito agradável de ler – o que é fundamental –, e tem a formidável qualidade de ser um excelente presente a ser dado a amigos, principalmente aos jovens.
Por isso, “Daquilo que eu sei: Tancredo e a transição democrática” é um livro que será indispensável, ao longo dos anos e décadas futuras, para quem quiser entender o que aconteceu nos meses anteriores e posteriores a janeiro de 1985 no Brasil, quando nosso País fez sua formidável inflexão de uma ditadura para a democracia.

Deveria ser obrigação de todo político escrever suas memórias. Sobretudo daqueles poucos que, por destino, caráter e competência, participaram dos grandes momentos da história de seu país. Mesmo não tendo sido obrigação, Fernando Lyra fez esse gesto. Por isso, todos nós, brasileiros, temos dois débitos históricos com ele: pelo que ele fez para mudar o Brasil, retomando a democracia interrompida, e por ter compartilhado conosco tudo o que sabe sobre Tancredo e a transição democrática no Brasil.


Do que sabia Fernando Lyra

Lyra esteve mais assíduo no processo a partir da posse de Tancredo no governo de Minas, em março de 1983.

Com raro senso da realidade política, o pernambucano disse a Tancredo, logo depois da cerimônia, que ali estava para lançar a candidatura do mineiro à Presidência da República. O que ele não conta, e que eu posso contar, é que Tancredo se surpreendeu com a visita do jovem parlamentar, conhecido por ser dos mais aguerridos "autênticos".

Como era de seu comportamento, Tancredo disse-lhe o que continuaria a dizer a todos, até que as circunstâncias o confirmassem - pretendia governar Minas até o fim do mandato. Com sua experiência política de cinco décadas (desde 1933), o governador percebeu que podia confiar em Lyra. E confiou. Nos intensos meses que se seguiram, o rapaz de Caruaru, que pouco passara dos 40 anos, foi dos mais hábeis e operosos articuladores da campanha. Quando Tancredo, ao desenhar o Ministério, nomeou-o para a pasta da Justiça, muitos se surpreenderam. Na verdade, o já então presidente repetira, com o pernambucano, o que o gaúcho Getúlio fizera com o mineiro Tancredo Neves, nomeando-o para a mesma pasta nos tumultuados meses que antecederam o 24 de agosto. Tancredo não podia escolher um medalhão, que viesse a ocupar o cargo com soberba, mas jovem deputado capaz de ouvi-lo e disposto a agir. A pasta da Justiça, ao contrário do que muitos pensam, não se destina aos mestres do direito mas aos excelentes articuladores políticos. Quase sempre foi assim. O ideal estava em encontrar juristas com grande experiência política, como havia sido Francisco Campos no Estado Novo. Os governos militares não necessitavam de articuladores políticos. Ibrahim foi uma exceção coerente com a missão de Figueiredo. Preferiam juristas alinhados com o pensamento conservador, quando não reacionário, como Gama e Silva e Alfredo Buzaid. Acossado pela reação, Getúlio confiou no jovem Tancredo, que, conhecedor do direito, se destacara como parlamentar, tanto em Minas quanto no Rio. Tancredo deve ter pensado nisso, ao escolher Lyra. Ele sabia que, não obstante o imenso prestígio popular que o ungira, uma coisa é a campanha e outra, o governo. Ele teria que acomodar forças heterogêneas e mesmo antagônicas, que se haviam reunido para apóia-lo, e necessitava de alguém capaz de dialogar em todas as províncias doutrinárias e ideológicas.

Recordo-me da visita que fizemos, os dois, ao professor Affonso Arinos, antigo e combativo adversário de Getúlio e do próprio Tancredo, com quem debatera na Câmara dos Deputados, antes que o pessedista fosse para o Ministério. Fôramos ao apartamento, que ele ocupava eventualmente em Brasília, convidá-lo, em nome de Tancredo, a presidir a Comissão de Estudos Constitucionais - que seria subordinada ao Ministério da Justiça - encarregada de elaborar anteprojeto de Constituição. Ao aceitar a relevante missão, Affonso, com a elegância que o distinguia, cumprimentou Lyra, dizendo-lhe que, não obstante a sua esfuziante juventude, via nele, com o respeito necessário, o ministro da Justiça de nosso Brasil.

Ao visitar o então ministro Ibrahim Abi-Ackel, para tratar da transferência do cargo, Lyra percebeu que o seu predecessor o avaliava como modesto bacharel formado em Caruaru. O novo ministro então apresentou o seu secretário-executivo, o respeitado advogado e jurista José Paulo Cavalcanti Filho, e o engenheiro e economista Cristovam Buarque, seu chefe-de-gabinete, com a frase competente e bem humorada: "Ministro, eu me formei em Caruaru, mas esses dois estiveram em Harvard". Em nenhum outro Ministério ficou tão claro que o Brasil mudava, naquele dia de março. A primeira providência de José Paulo Cavalcanti foi mandar retirar as placas que proibiam o acesso das pessoas às salas e gabinetes, e dispensar das portas e corredores os guardas armados.

Os que não viveram os anos de arbítrio não sabem o que foram aqueles tempos, nem como foi árdua a luta política para arquivá-los na história. O livro de Lyra conta parte do que ele sabe. Nem tudo, é claro.

Cristovam Buarque

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