quinta-feira, 7 de março de 2013

UMA PROSA PARA UMA ROSA

No final da Rua Cel. Giló avista-se o solitário Casarão dos Morais. Na sala de estar, repleta de quadros, exibem-se os vultos que outrora se abancavam na calçada para uma genuína prosa sobre o imponderável tempo arrematando as conclusões da vida. Hoje, estamparam-se nas paredes, numa saudosa galeria mnemônica. As janelas abertas, de par em par, observam atentamente os inquietos transeuntes que passam rumo ao Bairro dos Venâncio. Havia, até recentemente, mais o que se ver, porém o impiedoso tempo corroeu a robustez das coisas e as volúveis lembranças. Um frondoso Flamboyant, fincado em frente à senhorial casa, é testemunha daquelas fulgurantes eras.

Às vezes o intempestivo rio, que passa ali em frente, ilhava o casarão. Irrequietos remos de canoas, num esforço hercúleo, trabalhavam para ir de uma margem a outra. A meninada, em algazarra, fazia estripulias nos banhos do Poti. De quando em quando, o intermitente fluído aquoso, esquecia-se de voltar. As forças da natureza, que fazem desaguar as providenciais chuvas, se afastavam do sertão. O verão, outra vez doloridamente infecundo, estica o mês de abril destroçando as esperanças de um ser que teima em sobreviver, que insiste na agreste ilusão. Naqueles tórridos dias o homem do campo veste um aviltante gibão do inaceitável padecer. Tudo perdido, esgotada as provisões, a fome é um ranger de dentes nas mirradas carne dos filhos pequeninos e o único apelo é campear um minguado auxílio nas cidades. Até a insensível caatinga agoniza no aspecto desolador, árvores sem folhas, galhos estorcidos e secos afeito a dolorosa paisagem que concebe a tristezas dos ermos.

Assim, transcorrem pesarosos os ressequidos meses de 1951. Como Portinari a pintar “Os Retirantes”, uma solene senhora, debaixo de um imenso chapéu abriga-se de um sol escaldante, exibe paleta e pincel nas mãos a tingir um quadro sobre um cavalete. Bem próximo, no leito do Rio Poti, os retirantes montaram imensas latadas de moitas de mufumbo, onde diversas famílias de maltrapilhos sertanejos descansam, após uma manhã de suplicantes esmolas campeadas pelo centro da cidade. Enquanto a jovem Rosa Morais imprime aquele momento histórico na oleosa tela intitulada “Realidade Nordestina” recorda-se de outros momentos marcantes de sua vida. Foi em outra grande seca, a de 21, mal completara 4 anos de ingenuidade infantil e já se deslumbra com as belezas da natureza nas margens do Poti. Vendo o exemplo dos retirantes experimenta o frutinho verde de jaramataia, atitude que lhe custa a boa saúde, mesmo com tanto purga de leite que sua mãe lhe obrigara a beber.

Fora as graves consequências do envenenamento pelo fruto silvestre, a jovem Rosa Morais é uma pessoa temperada na disposição de fazer, na vontade aprender e, principalmente, na vigorosa fé pela busca da vida. Transporta uma considerável cultura, aprendida de forma quase autodidata, como uma mestra de si mesmo em constante evolução, num sábio fluir, mas os pés na realidade. Mal termina o 3º Ano Primário no Colégio Lourenço Filho, passa no concurso para professora do Estado indo substituir uma professora na cidade de Novo Oriente.

Recorda-se de quando o senhor Agostinho Teixeira, da fazenda campestre, chama os dois netos, e ordena: - Oh, Antônio Cândido, chame o Raimundinho, selem três cavalos e vão buscar a professora Rosa, na cidade de Novo Oriente. Ela vem passar o fim de semana com a gente. Os meninos vão satisfeitos, pois têm a meiga Rosa como uma querida irmã. Na volta, a professora, sentada de lado numa sela especial, conversa amenidades com os rapazes, relata seus acontecimentos na terra da Lagoa do Tigre, aponta displicente para um carcará na copa de uma aroeira a vigiar a solidão do sertão e pergunta o que os meninos fizeram na semana.

Uma de suas amigas, com ciúmes, até afirmara: - A Rosa, agora, só quer saber dos Teixeiras!

Mas amizade é um amor que nunca morre! O jovial Antônio Cândido, espirito brincalhão, confiante na lealdade da companheira, se faz até de confidente ao contar que noivara em Ipueiras e socorria-se com ela nos momentos de apertos: - Rosa, você tem um dinheirinho aí? Mas não diga a Joaninha, que depois eu lhe pago! Sabia que ele gostava de se entreter numa mesa de bilhar. Já o Raimundo era mais pacato, concentrado, e já caprichara ao escrever o discurso que ele iria pronunciar na posse de Presidente da Congregação Mariana, na cidade de Sobral e com certeza Dom José Tupinambá estaria na plateia! Nunca entendeu direito porque seu grande amigo Raimundinho se afastara de sua companhia, só desconfia, pois tudo aconteceu depois que ele conheceu a professora Delite. Não viam a hora de chegar logo na cidade para, a noitinha, ir a praça da Matriz e ficar ouvir a banda tocar no coreto.

Imensa é sua gratidão ao professor Luiz Bezerra, pois o mesmo a obrigou aceitar um convite para ensinar desenho na Escola Normal. Na apreensão pela missão imposta, ele a tranquiliza: - Rosa, mesmo faltando um semestre para você se diplomar, sei que és capaz e dará conta, até vai lhe ajuda no pagamento da mensalidade! Desta experiência, ao longo dos anos, foram surgindo as 42 belas obras que compõem o tema “Natureza e Arte” a maioria das telas com perspectivas nordestinas que estão espalhadas pelo mundo.

Lecionava pela manhã, estudava a tarde e à noite, na luz do lampião, fazia florzinhas de fécula de batata, de papel, de couro, de parafina, enfeites de velas de primeira comunhão para adquirir dinheiro e pagar a escola. Concorrido foi o Curso de pintura, que montou na Escola Normal, entre os alunos tinha um padre francês, chamado João, que pincelava os quadros como se fosse uma oração.

Outro amigo que a digníssima professora Rosa Morais recorda com carinho é do Pe. Moacir, que planejou sua entrada para a Congregação Religiosa das Josefinas. A irmã Rosita permitiu que ela passasse 17 dias internada, para pensar e se avaliar. Rosa afirma: – Eu rezei muito para o Senhor mostrar minha vocação. Tive vontade, mas me faltou aptidão para usar o habito das freiras. Não sabia o que fazer, nunca usei batom, nem esmaltes nas unhas. Eu sou eu mesma, sempre me pertenci! Não fiquei na irmandade, mas também não tive coragem de casar! Apareceu um rapaz, era um ex-seminarista e eu lhe disse que ele foi bobo, por ter jogado os pés no Senhor.

Rosa sempre esteve em contado com os padres, inclusive o irmão, Francisco Ferreira de Morais que foi um deles, na cidade do Ipu. Do Pe. Bonfim, em Crateús, lembra-se do temperamento explosivo e de quando surgia um probleminha no colégio, onde ensinou por 37 anos, ela mesma tentava resolver, com ajuda do Senhor Expedito Paiva, antes de o levar ao conhecimento do duro Monsenhor. No famoso colégio da Firmino Rosa exerceu mais um dos seus dotes artísticos, o poético, é a autora do belo hino que glorifica o Colégio Pio XII.

Hoje, o velho casarão dos Morais tem um ar nostálgico, que transparece no olhar das

Janelas abertas ao horizonte, mirrando a calha seca do rio. E na sala de estar, Dona Rosa repousa de uma longa batalha para educar gerações de crateuenses, assistindo uma destas emissoras católicas de TV. Nem imagina que nesta sexta-feira, dia 8 de Março, receberá uma homenagem, que pouquíssimas pessoas no mundo tiveram a honra de receber, uma Benção Papal, assinada pelo punho do próprio Bento XVI, antes de renunciar. Sem falar que já se prepara a grande festa para o dia 26 de outubro quando completará 100 anos de admirável existência. A professora Rosa Morais, com tantos motivos para ser feliz, sendo a própria dona da felicidade autêntica, ainda ganha mais uma longeva e poética satisfação: vida cônscia! Obrigado, Mestra!

Raimundo Cândido

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