terça-feira, 19 de novembro de 2013

SOB A PROTEÇÃO DO ACASO!

Autoridades que compõem a mesa,
Senhoras e Senhores:
Boa noite!

Tudo o que vislumbramos e apalpamos originou-se da palavra! Está cunhado, nas pedras sagradas e na madeira da Lei, que no princípio era o Verbo.

Os que se entregam à sedutora aventura de amar o verbo nada mais são que simples ordenhadores das letras, apicultores das sílabas: nas madrugadas da vida, ora colocam as mãos no ubre do idioma; ora se embrenham na flora da linguagem. E desse mágico movimento extraem o leite mugido das palavras nutritivas e o mel puro do vocábulo profundo.

Do leito da História depreendemos que o primeiro espaço congregacional destes aventureiros morfológicos foi idealizado pelo filósofo Platão, e tinha como lócus uma escola fundada no ano 387 a.C., próxima a Atenas. Nessa Casa, um verdadeiro altar dedicado às musas, onde reinava a informalidade e o ensino era professado por meio de lições e diálogos entre os mestres e os discípulos, o filósofo pretendia reunir contribuições dos mais distintos campos do saber. Deslizava sobre o tablado daquele pavimento mosaico a inquietação filosófica, a precisão matemática, o deleite da música, a astronomia com sua estrelada visão e o arcabouço da legislação. Seus jovens seguidores dariam continuidade a esse trabalho que viria a se constituir em um dos capítulos basilares do compêndio histórico do saber ocidental.

Pela tradição, o imóvel teria pertencido a Academus - herói ateniense da guerra de Tróia, e por isso era chamado de Academia. A escola era formada por uma biblioteca, uma residência e um jardim. Vejam aí: a fermentação ideológica (simbolizada na biblioteca), a intimidade gregário-biológica (representada pela edificação residencial) e a interação sócio-ecológica (sintetizada pelo jardim) constituem, até os dias atuais, os três vértices essenciais da pirâmide literária.

E qual a missão dos construtores dessa pirâmide, os designers da semântica, que decifram na prancheta da arte os signos prodigiosos da linguagem?

Segundo o patrono da cadeira que ocupo nesta Arcádia, Gerardo Mello Mourão – aquele a quem Carlos Drummond de Andrade chamou de o maior poeta brasileiro -

“neste mundo o que dura é o que foi fundado pelos poetas. (...) ´A Grécia foi fundada pelo poeta, Homero, cego e gênio. O império romano foi inspirado pelo poeta Virgílio e por um escritor que se fez general, Caio Julio César. O mundo judaico foi fundado pelos poetas das profecias, Jeremias, Isaias, Ezequiel, Daniel e pelos Cantos do rei Davi. A civilização mulçumana foi fundada pelo poeta Maomé, seu senhor e soberano. A China e a Ásia Oriental foram fundadas pelo poeta Kung-Fu-Tze, que conhecemos por Confúcio. A Itália foi fundada por Dante, poeta absoluto. Churchil animava suas tropas contra o fogo de Hitler, enviando aos soldados os versos de Shakespeare. E o que seria de Portugal sem Camões e Pessoa? Da França sem Voltaire, Baudelaire, Lamartine e Hugo? Foi o Deus poético e dialético que engendrou o pensamento mítico, o tempo divino do homem, mas foi a verdade helênica que deu vigor à noção de liberdade e democracia, verdade luminosíssima que fundou o homem livre.”

Quem fundou o Brasil senão os seus primeiros moradores, poetas que batizamos de índios, seres cantantes que exibiam o sol na fronte e carregavam a lua no peito; seres dançantes que tinham os rios como palcos e a natureza imaculada como platéia?!

A poesia, senhoras e senhores, está atravessada em toda a nossa continental geografia, acompanhando cada astre e desastre da nossa caminhada pátria. No nosso próprio achamento lá estava ela, ornando o pergaminho da lavra de Pero Vaz de Caminha para descrever nossa terra:

“De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa”.

Quando, por condução dos governadores gerais, fomos sujeitados à opressão colonial, a resistência logo se fez sentir pela boca de brasa dos cantores barrocos. A poética, e em especial sua faceta profética - artilharia criativa, praguejar explosivo, protesto em forma de caricatura – manifestou-se por Gregório de Matos Guerra:

A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.


Na Inconfidência Mineira, os poetas eram os faróis do povo para driblar a censura oficial e o terror. O manancial lírico que fez Tomás Antônio Gonzaga dedilhar os líricos versos de ‘’Marília de Dirceu’’ produziu também as epístolas satíricas conhecidas como ‘’Cartas Chilenas’’, versos decassílabos brancos sem rimas, cobertos de máscaras e alusões ao despotismo reinante, referindo-se a Vila Rica como se o Chile fosse. Ali se lê:

Os grandes, Doroteu, da nossa Espanha
Têm diversas herdades: uma delas
Dão trigo, dão centeio e dão cevada,
As outras têm cascatas e pomares,
Com outras muitas peças, que só servem,
Nos calmosos verões, de algum recreio.
Assim os generais da nossa Chile
Têm diversas fazendas: numas passam
As horas de descanso, as outras geram
Os milhos, os feijões e os úteis fruto
Que podem sustentar as grandes casas.


Castro Alves, ardente expressão da fé na justiça e no fim da opressão, fez do poema um látego pesado contra a escravidão. Bradou que “a praça, a praça é do povo como o céu é do condor”. Jamais esqueceremos seus versos faiscantes, encantados e flamejantes:

Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... Chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...



Bem próximo de nós, o mais lúdico dos nossos cantores, o centenário poeta Vinicius de Moraes, que no século passado presenciou também a perversão e a injustiça que marcam as relações entre Capital e Trabalho, consignou o seu grito no Operário em Construção:

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.


Esse breve passeio pela alameda cronológica brasileira foi só para reafirmarmos uma clara e antiga certeza: não existe boa escritura divorciada da construção civilizatória, do conserto planetário.

A razão de ser do escritor – e dos seus coletivos organizados, que são as academias – é a de contribuir para que as galinhas se transformem em águias, é fomentar a proliferação de vaga-lumes nos obscuros túneis do tempo, é ser fresta de luz na caverna platônica.

Lembro quando aqui ingressei. Em uma viagem de carro para a minha terra natal, Crateús, os acadêmicos João Bosco Ferreira Lima e José Anízio de Araújo formularam o convite para que somasse na construção do Silogeu que engatinhava. A ambos quero externar publicamente minha gratidão.

No dia da posse, ingressávamos eu, Pedro Jorge e Nirvanda Medeiros, Olímpio e Murilo Araújo, além do mestre José Muniz Brandão. Este deixou em nosso fraternal convívio um ramo de estrelas, uma ferradura de amor. Era uma substância do bem, uma mineral cachoeira de doação, um oceano de tranquila alegria. Sua silhueta de gentleman permanece em nossa memória. Por isso a nossa chapa foi batizada com seu nome. Incorporo as palavras do Presidente Seridião ao se referir aos acadêmicos Mário Kaúla e Matilde Mariano, todos na Mansão dos Justos.

Relembro também que, por ocasião da minha admissão, o Presidente era José Lemos de Carvalho, o Dezinho, o idealizador, que lançou a rede sobre o mar dos nossos corações e se fez pescador de escritores. Na sequencia, Dezinho passou o comando para Anízio Araújo, que acelerou a empreitada expansionista, como um bom mestre de obra da edificação literário-acadêmica. Seu sucessor, Seridião Correia Montenegro, constituiu-se o Presidente da completude. Conseguiu desbancar a máxima de Nelson Rodrigues e provar que é possível – e de maneira decente – a construção de uma unanimidade inteligente. A Diretoria empossada sabe que nos cômodos das palavras jamais caberão os latifúndios afetivos que ele logrou matricular no cartório sagrado do nosso coração. Parabéns, Seridião! Muito obrigado, irmão!

Manter o patamar congregacional obtido entre nós é martelo agalopado para poeta concretista desarmado. Os que nesta noite assumem a direção da AMLEF estão cônscios desse magnânimo desafio.

Francisco de Assis Almeida Filho, o Assis Almeida, que abraçou a fantástica e sedutora seara mercadológica da produção e edição livrescas, comandará a Diretoria de Publicações e Comunicações.

Para Diretor Cultural, convidamos aquele que abriu as cortinas do Ceará para os ventos da renovação democrática, que emprestou sua coragem e tirocínio para ajudar o Brasil a respirar os ares das liberdades públicas, Luiz Gonzaga da Fonseca Mota.

O Diretor de Relações Públicas, Marcus Fernandes de Oliveira, cuja oratória inflamada, postura destemida e intimidade com a ousadia o tornaram protagonista de republicanos debates e boas relações nesta Capital certamente contribuirá para a ampliação da fraternidade acadêmica.

O Segundo Tesoureiro, José Jackson Lima de Albuquerque, é um professor poeta que toca a vida em estilo haicai, com a concisão de um epigrama lírico japonês.

O Primeiro Tesoureiro, Jaildon Correia Barbosa, filho de Iracema ou do doce balanço de sua praia, cuida da finança institucional com o mesmo zelo que reserva ao dinheiro pessoal.

Maria Gilmaíse de Oliveira Mendes, nossa Segunda Secretária, é uma aguerrida e imparcial julgadora, que se fez, sobretudo, serva da filantropia na Casa de Afonso e Maria.

O Primeiro Secretário, José Olímpio de Sousa Araújo, impecável guia na condução de todos nós pelas selvas da gramática, tem nos mostrado que, sem espiritualidade, tudo se fragiliza, inclusive a inteligência.

A nossa Vice-Presidente, Grecianny Carvalho Cordeiro, fulgurante romancista que escolheu o ofício de promover a Justiça, festejada aqui e alhures, premiada no Brasil e na Europa, vestirá camisa de titular nesse time que dispensará reservas.

Se alguma temeridade pode ser arguida em relação à Diretoria empossada, certamente repousará sobre este que vos fala. Às vezes fiquei indagando sobre as razões que levaram esta Academia, soberano plenário de almas conscientes e corações livres, majoritariamente passada na moenda azul da maturidade, a escolher o mais imaturo dos seus integrantes para presidi-la. Certamente é uma aposta no acaso. E o acaso, se Deus quiser, como na música titânica, “o acaso vai nos proteger”.

Na ribeira do Poty, onde fui criado, aprendi desde cedo com Dom Antonio Batista Fragoso o valor de uma instituição denominada “mutirão”, ajuntamento de homens para lançar sementes à terra ou para concatenar tijolos no desenho mágico de uma obra. Desde então, sempre tive mais facilidade em verberar o pronome plural “nós” do que o pronome singular “eu”. E é assim, que sonhamos e rogamos ao Ser Superior que nos oriente à frente da AMLEF.

Mas, para que não paire a mínima réstia de dúvida, vou mais uma vez repetir quem sou. Eu sou:

Um pássaro – que tem o sol como meta/
Um apaixonado barco – em mares de aventura/
Um homem sério – com o coração de poeta/
Uma sonhadora abelha – que só busca doçura!

Nos olhos tristes – a infinita alegria/
No peito uma estrela – de invisível brilho/
Namorado da paz – torcedor da rebeldia/
Amante das pétalas – do sorriso filho.

Bandeira de incêndio – horizontal canção/
Um monte calmo – com tendências de vulcão/
Um marinheiro – que distribui beijos de adeus.

Uma árvore – perfumada de emoção/
Um grande ateu – que tem muita fé em Deus/
E que por tranquilidade – só tem a agitação!


Concluo recorrendo ao poeta e reiterando a mesma frase do meu discurso de posse aqui, que ainda conduzo no umbigo:

Não esperem nada de mim. Vim aqui para cantar. E para que cantem comigo!

Muito obrigado!

(Júnior Bonfim, Discurso de Posse na Presidência da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza - AMLEF - 13.11.2013)

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