sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

VOTO DO MINISTRO BARROSO NOS EMBARGOS INFRINGENTES - AP 470 - MENSALÃO


VOTO NOS EMBARGOS INFRINGENTES NA AÇÃO PENAL 470

Ementa: EMBARGOS INFRINGENTES. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELA PRESCRIÇÃO DA PENA MÁXIMA APLICÁVEL EM TESE. PROVIMENTO DOS EMBARGOS.

1. As penas aplicadas ao crime de quadrilha pelo acórdão embargado foram desproporcionais em si e, ademais, incongruentes com as demais penas aplicadas aos outros crimes pelos quais foram os embargantes condenados.

2. Mantendo-se proporcionalidade mínima e aplicando-se à pena de quadrilha o maior percentual de majoração aplicado aos demais crimes, verifica-se a inexorável prescrição da pretensão punitiva, com a extinção da punibilidade dos embargantes.

3. Se quatro juízes se pronunciaram pela absolvição e ao menos dois pela prescrição, a incidência da pena por quadrilha faria com que a posição da minoria prevalecesse sobre a da maioria, e isso em tema especialmente sensível como o da privação da liberdade individual.

4. Preliminar de mérito que pode ser conhecida em sede de embargos infringentes. Juízo que não envolve reapreciação da dosimetria in concreto, e sim a constatação de vício interno ao acórdão, do qual resulta um necessário realinhamento da pena máxima a que se poderia chegar.

5. Embargos infringentes providos para se declarar extinta a punibilidade, sem necessidade de julgamento do mérito propriamente dito.

6. De todo modo, caso se fosse avançar para o exame da procedência ou improcedência das imputações, a hipótese dos autos revela concurso de agentes, e não a caracterização do crime de quadrilha. Inexistência de elementos suficientes que demonstrem a formação deliberada de uma entidade autônoma e estável, dotada de desígnios próprios e destinada à prática de crimes indeterminados.



O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO:

I. INTRODUÇÃO

1. Logo no início de minha participação neste julgamento, fiz três observações. A primeira foi uma crítica à centralidade do dinheiro no sistema político brasileiro, com os custos estratosféricos das campanhas majoritárias e proporcionais. A segunda, a de que tal sistema, além do seu deficit democrático, era indutor da criminalidade. E penso que tal diagnóstico foi confirmado pela recorrente sucessão de escândalos políticos que continuaram a aparecer, em todos os níveis da Federação, sem distinção de partidos, indo de um lado a outro do espectro político. Minha terceira observação foi a de que a imensa energia jurisdicional dispendida no julgamento da Ação Penal 470 terá sido em vão se não produzirmos uma reforma política profunda, capaz de baratear o custo das eleições, dar maior autenticidade ao sistema partidário e ajudar na formação de maiorias consistentes no Congresso Nacional.

2. Ao retomar essa última fase do julgamento, reitero essas convicções e destaco que nada de relevante aconteceu ou parece estar em vias de acontecer em relação à reforma do sistema político. Por essa razão, continuaremos a viver um abominável espetáculo de hipocrisia, em que todos apontam o dedo para todos, enquanto muitos procuram manter ocultos os seus cadáveres no armário. Pior que tudo: temos um sistema político que não atrai vocações, que não mobiliza a juventude, compreensivelmente afastada pelo medo do contágio das práticas aqui denunciadas e condenadas. Vivemos a derrota do idealismo, diluído no argentarismo e na criminalidade política. Os juízos que formulo a seguir são rigorosamente técnicos. É o Direito que fornece as possibilidades e limites da minha atuação. Tal circunstância, no entanto, não neutraliza a minha aflição com a falta de iniciativa política que nos retém no abismo ético em que nos encontramos.

II. O JULGAMENTO ORIGINÁRIO

3. No julgamento originário, o Plenário do Tribunal dividiu-se em duas correntes no que diz respeito à configuração ou não do crime de quadrilha ou bando. De um lado, a partir do voto proferido pelo relator, Ministro Joaquim Barbosa, seis Ministros entenderam caracterizada a prática do delito (Ministros Luiz Fux, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Carlos Britto). Nessa linha, consideraram que a prova dos autos seria suficiente não apenas para demonstrar a ocorrência dos demais crimes (corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta de instituição financeira), mas também a criação deliberada de uma associação estável e dotada de desígnios próprios, destinada à prática de crimes indeterminados. Na síntese do eminente relator:

“O extenso material probatório, sobretudo quando apreciado de forma contextualizada, demonstra a existência de uma associação estável e organizada, formada pelos denunciados, que agiam com divisão de tarefas, visando à prática de delitos, como crimes contra a administração pública e o sistema financeiro nacional, além de lavagem de dinheiro”.

4. Na posição oposta, os Ministros Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli entenderam que a prova dos autos não revelaria a presença do dolo específico exigido pelo tipo penal de quadrilha. Ao revés, os elementos disponíveis permitiriam entrever apenas a formação de associações episódicas e conjunturais, destinadas à prática de condutas determinadas. Isso levou a condenações pelo conjunto de infrações identificadas, com os acréscimos relacionados ao concurso de agentes e à continuidade delitiva. Não teria havido, porém, a criação de uma entidade autônoma, com processos decisórios próprios e diversos da mera superposição de seus membros. Tampouco estariam presentes ou, pelo menos, devidamente demonstrados, os requisitos igualmente necessários da estabilidade e da indeterminação de crimes.

III. O JULGAMENTO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO

5. No julgamento dos primeiros embargos de declaração, assumi uma postura declarada de autocontenção. Entendi que aquele recurso, por sua natureza e destinação, não se presta a promover uma rediscussão ampla acerca dos fatos e das opções teóricas assumidas pela Corte no julgamento do mérito da ação penal. Isso não me impediu de sanar duas contradições internas da decisão: a do intermediário que ficara com pena maior do que o mandante (João Cláudio Genú) e a do coautor que ficara com pena maior que o autor principal (Breno Fischberg). Em ambos os casos, votei pelo realinhamento das penas aplicadas aos condenados, observados os critérios utilizados para os corréus implicados nos mesmos crimes. Ou seja: embora a dosimetria não fosse objeto de exame autônomo no âmbito dos embargos de declaração, foi necessário mudar algumas penas em razão do reconhecimento de vícios internos ao acórdão. Em ambos os casos, essa foi a posição da maioria.

6. Após o parcial provimento dos embargos de Breno Fischberg e João Cláudio Genu, o Ministro Teori Zavascki retificou os votos que já havia proferido para reconhecer a existência do que, a seu ver, corresponderia a outra contradição interna do acórdão, mais abrangente, relativa à valoração do crime de quadrilha em relação aos demais delitos que foram objeto de condenações. Nessa ocasião, afirmou S. Exa:

“O que se verifica no acórdão, na verdade, é uma discrepância de natureza objetiva na fixação da pena-base de um determinado delito em relação a outros delitos imputados ao mesmo réu: embora semelhantes as circunstâncias judiciais consideradas desfavoráveis, o avanço entre a pena mínima cominada em lei e a pena-base fixada chegou a percentuais de até setenta e cinco por cento do máximo possível para o crime de formação de quadrilha, aproximando-se do máximo da pena em abstrato, em completo descompasso com o critério adotado para os demais delitos, fixados em patamares mais ou menos semelhantes entre si, mas significativamente inferiores, que em geral não chegaram sequer a um terço daquele percentual.”

7. Essa também foi a compreensão dos Ministros Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Marco Aurélio, que acompanharam o voto do Ministro Teori Zavascki. Isto é: os votos vencidos identificaram uma desproporção objetiva entre os percentuais de aumento utilizados para elevar a pena-base da quadrilha e as dos demais delitos imputados aos mesmos réus. Em termos numéricos, essa disparidade foi consolidada pelo Ministro Dias Toffoli.

III. VOTO NOS PRESENTES EMBARGOS INFRINGENTES

8. Considero, com todas as vênias de quem pense diferentemente, que houve uma exacerbação inconsistente das penas aplicadas pelo crime de quadrilha ou bando, com a adoção de critério inteiramente discrepante do princípio da razoabilidade-proporcionalidade. Tal critério, ademais, afastou-se dos dois outros precedentes do próprio Tribunal, nos quais houve condenações por formação de quadrilha, também em casos envolvendo corrupção política. De forma ainda mais concreta, a desproporção se verifica em relação ao próprio critério que foi aplicado, nessa mesma ação penal, para a fixação da pena-base nas demais condenações impostas aos mesmos réus. E considero, sempre com o respeito devido e merecido, que a causa da discrepância foi o impulso de superar a prescrição do crime de quadrilha, com a consequência de se elevar parte das condenações e até de se modificar o regime inicial de cumprimento das penas.

9. Não é difícil demonstrar o ponto e sirvo-me aqui do mesmo raciocínio inicialmente desenvolvido pelo Ministro Teori Zavascki. Apenas para fins de encadeamento do raciocínio, rememore-se que, no sistema brasileiro, a determinação da pena segue um critério trifásico (Código Penal, art. 68): na primeira fase fixa-se a pena base; na segunda computam-se as circunstâncias atenuantes e agravantes; e, por último, as causas especiais de diminuição e aumento. A distorção aqui apontada verificou-se, de forma objetivamente constatável, na primeira fase.

10. A pena-base, como sabido, é fixada entre o mínimo e o máximo previsto no tipo penal, levando-se em conta as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, a saber: culpabilidade, antecedentes, conduta social e personalidade do agente, motivos, circunstâncias e consequências do crime, bem como o comportamento da vítima. Em função da presença ou não dessas circunstâncias, vai-se subindo na escala da pena, do mínimo em direção ao máximo.

11. Pois bem: todos os embargantes foram condenados por crimes diversos, consoante decisão já transitada em julgado. Além disso, por 6 votos a 4, alguns deles foram condenados pelo crime de quadrilha, objeto de reapreciação no presente recurso. Examino como foi feita a valoração da conduta e, por conseguinte, o cálculo da pena de cada um dos embargantes que integram o chamado núcleo político, cujos recursos estão em pauta hoje.

12. Delúbio Soares foi condenado pelos crimes de corrupção ativa e quadrilha. As circunstâncias judiciais desfavoráveis identificadas no acórdão condenatório foram em número de 4 (quatro): culpabilidade, motivo do crime, circunstâncias do crime e consequências do delito. Na determinação da pena por corrupção ativa – crime cuja pena mínima é de 2 anos e a pena máxima de 12 anos – o acórdão condenatório fixou-a em 4 anos. Isso significa que determinou um aumento de 20% em relação à diferença ou intervalo entre a pena mínima e máxima (a diferença entre a pena mínima e a máxima é de 10 anos, tendo a pena-base sido majorada em 2 anos). No tocante ao crime de quadrilha – cuja pena mínima é de 1 ano e máxima de 3 anos –, o acórdão impugnado fixou a pena-base em 2 anos e 3 meses. Isso significa que, valorando as mesmas circunstâncias judiciais, majorou a pena em 63% (a diferença entre a pena mínima e a máxima é de 2 anos, tendo a pena-base sido majorada em 1 ano e 3 meses).

13. No caso do embargante José Genoíno, igualmente condenado por corrupção ativa e quadrilha, as coisas se passaram de modo semelhante. As circunstâncias judiciais desfavoráveis identificadas no acórdão condenatório, em relação a ele, também foram em número de 4 (quatro): culpabilidade, motivo do crime, circunstâncias do crime e consequências do delito. Na determinação da pena por corrupção ativa, o acórdão condenatório fixou-a em 3 anos e 6 meses, correspondentes a 15% da diferença entre a pena mínima e a máxima. Já no tocante ao crime de quadrilha, a pena-base foi fixada em 2 anos e 3 meses. Isso representa um aumento de 63% da diferença entre a pena mínima e a máxima.

14. Com tinturas ainda mais fortes, o mesmo quadro se repete no caso do embargante José Dirceu, condenado, como os anteriores, por corrupção ativa e quadrilha. As circunstâncias judiciais desfavoráveis identificadas no acórdão condenatório, em relação a ele, foram igualmente em número de 4 (quatro): culpabilidade, motivo do crime, circunstâncias do crime e consequências do delito. Sua pena-base, em relação ao crime de corrupção ativa, foi de 4 anos e 1 mês, significando uma elevação de 21% em relação ao intervalo entre a pena mínima e a pena máxima. No que diz respeito ao crime de quadrilha, a pena-base foi fixada em 2 anos e 6 meses, correspondendo a uma majoração de 75% em relação à diferença entre a pena mínima e a pena máxima. Neste caso, estabeleceu-se como pena-base quase o limite de pena máxima, antes mesmo de se apreciar a incidência de qualquer agravante ou causa de aumento.

15. No caso do embargante José Roberto Salgado, condenado por lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta de instituição financeira, evasão de divisas e formação de quadrilha, repetiu-se situação semelhante. Quanto ao crime de quadrilha, as circunstâncias judiciais desfavoráveis identificadas no acórdão condenatório foram em número de 4 (quatro): culpabilidade, motivo do crime, circunstâncias do crime e consequências do delito. Na determinação da pena por evasão de divisas – na qual se verificou a maior exacerbação –, o acórdão condenatório fixou-a em 2 anos e 9 meses, correspondentes aproximadamente a 18% da diferença entre a pena mínima e a máxima, considerando desfavoráveis 3 (três) circunstâncias judiciais (culpabilidade, motivo do crime e circunstâncias do crime). Já no tocante ao crime de quadrilha, a pena-base foi fixada em 2 anos e 3 meses. Isso representa um aumento de 63% da diferença entre a pena mínima e a máxima. Trata-se de uma variação de 350% entre uma coisa e outra, impossível de ser explicada apenas pela existência de uma circunstância desfavorável adicional.

16. Por fim, o mesmo padrão é observado em relação à embargante Kátia Rabelo, condenada por lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta de instituição financeira, evasão de divisas e formação de quadrilha. As circunstâncias judiciais desfavoráveis em relação ao crime de quadrilha foram em número de 4 (quatro): culpabilidade, motivo do crime, circunstâncias do crime e consequências do delito. Na determinação da pena por evasão de divisas – na qual se verificou, também aqui, a maior exacerbação –, o acórdão condenatório fixou-a em 2 anos e 9 meses, correspondentes aproximadamente a 18% da diferença entre a pena mínima e a máxima, considerando desfavoráveis 3 (três) circunstâncias judiciais (culpabilidade, motivo do crime e circunstâncias do crime). Já no tocante ao crime de quadrilha, a pena-base foi fixada em 2 anos e 3 meses. Isso representa um aumento de 63% da diferença entre a pena mínima e a máxima, aplicando-se a mesma observação do parágrafo anterior.

17. Veja-se, então: levando em conta as mesmas circunstâncias judiciais, o percentual de aumento foi multiplicado de três a quatro vezes apenas na aplicação das penas de quadrilha a cada um dos condenados. E aqui não se pode afirmar que os fatos tomados em consideração fossem substancialmente diversos na análise de cada um dos delitos, o que poderia explicar a desproporção. Pelo contrário, o que se extrai do acórdão é a utilização do mesmo conjunto básico de elementos para a justificação das diferentes circunstâncias judiciais desfavoráveis. A desproporção e a irrazoabilidade do critério saltam à vista. Note-se que não se trata de uma comparação entre juízos formulados em processos distintos ou mesmo por julgadores distintos, mas, sim, de uma incongruência a meu ver insuperável no interior do próprio acórdão condenatório.

18. Note-se, igualmente, que não se trata de exigir que as penas por cada delito sejam fixadas com “proporção exata”, na linha do que sustentou o Ministério Público em contrarrazões. Estou de acordo que não deva ser assim. Mas não posso deixar de constatar que o acórdão situou-se no extremo oposto. Tratar isso com naturalidade transformaria a graduação da pena em ato de vontade livre, o que é incompatível com o Estado de direito. Nessa linha, com o devido respeito, penso que o raciocínio sustentado pelo Parquet não legitima a valoração efetuada quanto ao crime de quadrilha na AP 470, e sim a infirma.

19. De toda forma, para evitar simplificações excessivas, tive o cuidado de fazer uma pesquisa no histórico ainda recente de ações penais julgadas por esse mesmo Supremo Tribunal Federal, envolvendo especificamente o crime de quadrilha e outros delitos relacionados à corrupção política. O que apurei foi o seguinte:

a) AP 396/RO (Natan Donadon): houve condenação pelos crimes de peculato (CP, art. 312)1 e formação de quadrilha (CP, art. 288)2. Na dosimetria, a Ministra Cármen Lúcia, relatora, fixou a pena-base do peculato em 8 anos e 3 meses – i.e., 6 anos e 3 meses acima do mínimo legal (2 anos) – e a da quadrilha em 2 anos e 3 meses – i.e., 1 ano e 3 meses acima do mínimo (1 ano). Em ambos os casos, S. Exa. avançou os mesmos 62,5% na escala penal. Prevaleceu, contudo, o voto do Ministro Dias Toffoli, que definiu a pena-base do peculato em 5 anos – i.e., 3 anos superior ao mínimo (2 anos) – e a da quadrilha em 2 anos – i.e., 1 ano acima do mínimo legal (1 ano). Dessa forma, o Tribunal exasperou a pena-base em 30% no peculato e em 50% na quadrilha.
b) AP 481/PA (Asdrúbal Mendes Bentes): houve condenação pelos crimes de corrupção eleitoral (Código Eleitoral, art. 299)3, esterilização cirúrgica irregular (Lei nº 9.263/1996, art. 15)4, estelionato (CP, art. 171)5 e quadrilha (CP, art. 288). Na dosimetria, o Tribunal acompanhou o Relator, Ministro Dias Toffoli, que definiu as penas-bases da seguinte forma:

(i) Corrupção eleitoral: 1 ano e 2 meses (1 ano, 1 mês e 29 dias acima do mínimo) – majoração de 29%
(ii) Esterilização cirúrgica irregular: 2 anos e 4 meses (4 meses acima do mínimo) – majoração de 5,5%
(iii) Estelionato: 1 ano e 2 meses (2 meses acima do mínimo) – majoração de 4,2%
(iv) Quadrilha: 1 ano e 2 meses (2 meses acima do mínimo) – majoração de 8,3%.

20. Como se observa, em nenhum dos dois casos a pena-base do crime de quadrilha foi fixada com uma discrepância tão grande em relação às demais penas fixadas. Já no caso aqui presente, a pena-base do embargante José Dirceu, por exemplo, foi fixada em 2 anos e 6 meses, avançando 75% na escala penal, a ponto de quase atingir o teto legal (3 anos). Para que se tenha uma ideia, a condenação por corrupção ativa teve a pena-base definida em 4 anos e 1 mês – uma elevação de apenas 21% em relação ao intervalo entre as penas mínima e máxima. Trata-se de uma variação superior a 250% entre uma coisa e outra. Como apontado pelo Ministro Teori Zavascki, tal situação se reproduz nas demais condenações por quadrilha. E apenas nestas, ao menos com essa peculiar intensidade.

21. Ao comentar o julgamento da Ação Penal 470, muito antes de ser Ministro, escrevi na Resenha de 2012 para o site Consultor Jurídico, que ele fora “um ponto fora da curva”. Embora vista como enigmática, a expressão tinha dois sentidos. Em primeiro lugar, significava o rompimento com uma tradição de leniência e impunidade em relação a certo tipo de criminalidade política e financeira. Numa segunda acepção, ela designava a exacerbação de certas penas, em patamar discrepante da jurisprudência do Tribunal e dos parâmetros utilizados para outros delitos no mesmo processo. Foi este o caso em relação ao crime de quadrilha ou bando, com todas as suas conotações. E aqui não tenho a pretensão de convencer todos e cada um dos Ministros da inadequação desse desalinhamento. Como membro do colegiado, tudo o que posso fazer é explicitar com toda a transparência as razões do meu próprio convencimento.

22. Pessoalmente, considero essa questão uma preliminar de mérito. Mas antes de demonstrar o ponto, penso ser próprio fazer uma reflexão prévia. Na minha visão, sem a exacerbação seletiva que apontei acima, as penas por quadrilha já estariam todas prescritas e, consequentemente, teria sido extinta a punibilidade em relação a elas. Isso porque as penas cabíveis ficariam em patamar inferior a 2 (dois) anos. Pelo art. 109, V, do Código Penal, penas não superiores a esse patamar prescrevem em 4 (quatro) anos. O recebimento da denúncia se deu em agosto de 2007. As condenações se deram em dezembro de 2013, de modo que, caso tivessem sido fixadas com mínima proporção às dos demais delitos – ainda que com variação razoável para maior – as penas de quadrilha estariam inequivocamente prescritas.

23. Reitero que não modifiquei as penas, por ocasião dos embargos de declaração, por entender que seria tecnicamente impróprio fazê-lo naquela via e circunstância. Mas, no mérito, estou de acordo com a divergência então inaugurada pelo Ministro Teori Zavascki e acompanhada pelos Ministros Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Marco Aurélio. Em verdade, não sou sequer convencido de que o avanço em relação à pena-base de quadrilha ou bando deva necessariamente corresponder ao maior percentual adotado para a pena-base do segundo delito exacerbado em maior medida. Mas o ponto não é relevante aqui. Seja como for, a consequência desse raciocínio é a constatação objetiva de extinção da punibilidade, por ocorrência da prescrição.

24. Chega-se aqui a uma situação que, se consumada, configuraria grave incongruência jurídica. Mantidas, no julgamento do presente recurso, as posições já delineadas, tem-se o seguinte quadro: cinco dos Ministros presentes votaram pela condenação pelo crime de quadrilha; quatro dos Ministros votaram pela absolvição; e pelo menos dois Ministros entendem que houve, em qualquer caso, extinção da punibilidade. Vale dizer: a maioria do colegiado entende que não é o caso de aplicação e execução da pena pelo crime de quadrilha, seja por atipicidade, seja por extinção da punibilidade. Considero, consequentemente, que a incidência da pena, contra o convencimento da maioria, constituiria uma hipótese de injustiça flagrante, que não deve ser chancelada pelo intérprete. Não fora por qualquer outra razão, somente esta já seria suficiente para que eu desse provimento ao recurso.

25. Com isso, retomo o meu raciocínio de que se está aqui diante de uma questão de mérito. A prescrição da pena em tese, em rigor técnico, é uma preliminar de mérito. Pois bem: o Ministro Teori Zavasky demonstrou, de modo irrefutável, o máximo de pena que poderia ser aplicado ao crime de quadrilha, sem quebra do mínimo de coerência interna que se deve exigir do acórdão. Isto é, sem violar o mandamento constitucional da proporcionalidade, comprometendo sua validade. Não se trata de revisitar a dosimetria. Trata-se de um juízo prévio à determinação das penas concretas. Vale dizer: mesmo em caso de condenação, nenhuma pena poderia exceder tal patamar. Por isso considero a questão passível de ser conhecida em sede de embargos infringentes, que envolvem um novo exame quanto à procedência ou improcedência das imputações. Tal como considerei possível rever penas específicas em embargos de declaração, não de forma autônoma, mas na esteira do reconhecimento de vício interno do acórdão. Diante disso, não posso, nem mesmo em tese, declarar a procedência e referendar a execução da pena em um caso inequívoco de extinção da punibilidade. Não fosse pela via dos presentes embargos, a hipótese seria de concessão de habeas corpus de ofício.

26. Pois bem: estabelecida a pena máxima a que legitimamente se poderia chegar, é essa a sanção que preciso tomar como parâmetro para a contagem do lapso prescricional. Não se trata de uma pena em perspectiva, estimada à luz dos critérios que seriam utilizados em sua fixação caso constatada a culpabilidade. Não. Cuida-se, ao contrário, da pena máxima validamente aplicável, sem incidir na desproporção objetiva e injurídica apontada. E assim verifico, de plano, que essas penas máximas, em relação a todos os embargantes aqui considerados, encontram-se prescritas, por serem todas inferiores a 2 (dois) anos. Desse fato decorre a extinção da punibilidade quanto ao crime de quadrilha ou bando.

27. Portanto, o meu entendimento é no sentido de que a prescrição, tal como configurada e apresentada acima, constitui uma preliminar de mérito, a ser pronunciada antes e independentemente do juízo condenatório ou absolutório. E, por essa razão, dou provimento ao recurso para declarar extinta a punibilidade. No entanto, para evitar uma imensa discussão paralela, de natureza procedimental, adianto que, caso fosse avançar para o mérito propriamente dito, meu voto estaria alinhado aos fundamentos que foram sustentados pela Ministra Rosa Weber. Concluiria, assim, que a hipótese foi de coautoria e não de quadrilha –, o que importa, igualmente, no provimento do recurso.

28. Essa convicção quanto à extinção da punibilidade em relação ao crime de quadrilha não minimiza o evidente juízo de reprovação que se deve fazer quanto aos episódios gravíssimos que restaram comprovados. Com a minha adesão, todos os embargantes foram condenados pelo Tribunal, por decisão irrecorrível, pelos crimes de corrupção ativa, peculato, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta. As penas definitivas em relação a tais crimes foram as seguintes:

- José Dirceu: 7 anos e 11 meses
- José Genoíno: 4 anos e 8 meses
- Delúbio Soares: 6 anos e 8 meses
- Marcos Valério: 37 anos, 5 meses e 6 dias
- Cristiano Paz: 23 anos, 8 meses e 20 dias
- Ramon Hollerbach: 27 anos, 7 meses e 20 dias
- Simone Vasconcelos: 12 anos, 7 meses e 20 dias
- Kátia Rabello: 14 anos e 5 meses
- José Roberto Salgado: 14 anos e 5 meses.

29. São penas altas, que levaram em conta o desvalor da conduta e as circunstâncias dos crimes. Penas que, no geral, correspondem a uma ou mais condenações por homicídio (cujas penas vão de 6 a 20 anos). Mais que isso, superando uma tradição de impunidade, foram concretamente executadas. Nesse contexto, não se justifica o emprego do tipo de quadrilha como um adicional punitivo. A sua caracterização pressupõe o dolo específico de constituir uma associação estável com desígnios próprios, destinada ao cometimento de delitos indeterminados. E isso, com todas as vênias dos que pensam diferentemente, não corresponde à minha compreensão dos autos.

30. Fontes diversas divulgam o sentimento difuso de que qualquer agravamento das penas é bem-vindo e de que a imputação de quadrilha, em particular, teria caráter exemplar e simbólico. É compreensível a indignação contra a histórica impunidade das classes dirigentes no Brasil. Mas o discurso jurídico não se confunde com o discurso político. E o dia em que o fizer, perderá sua autonomia e autoridade. O STF é um espaço da razão pública, e não das paixões inflamadas. Antes de ser exemplar e simbólica, a Justiça precisa ser justa, sob pena de não poder ser nem um bom exemplo nem um bom símbolo.

31. Minha posição é de que o marco institucional representado pela Ação Penal 470 servirá melhor ao país se não se apegar a rótulos infamantes ou a exacerbações punitivas. Justiça serena, como deve ser, rigidamente baseada naquilo que a acusação foi capaz de demonstrar, sem margem de dúvida. A condenação maior que recairá sobre alguns dos réus não é prevista no Código Penal: a de não haverem sequer tentado mudar o modo como se faz política no Brasil. Por não terem procurado viver o que pregavam. Por haverem se transformado nas pessoas contra quem nos advertiam.

32. Em conclusão: entendo que está extinta a punibilidade dos réus pela ocorrência de prescrição da sanção máxima que poderia ser validamente aplicável, sob pena de o acórdão conter vício interno insuperável. No mérito propriamente dito, entendo que a hipótese foi de coautoria e não de quadrilha. Reitero aos colegas que ao apresentar a minha própria valoração sobre os fatos e o Direito, não estou fazendo juízo de valor sobre a opinião de quem quer que seja. A vida comporta muitos pontos de observação. Está em André Gide: “Creia nos que buscam a verdade. Duvide dos que a encontram”. Um juiz constitucional tem o dever de dialogar com a sociedade e eu expus os fundamentos da minha convicção com o máximo de sinceridade e transparência de que fui capaz.
Com essas considerações, dou provimento aos embargos infringentes. É como voto.

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