sexta-feira, 30 de abril de 2010

UM DISCURSO HISTÓRICO


Sr. Ministro Cezar Peluso, Presidente do Supremo Tribunal Federal

Sr. Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva,

Sr. Presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Michel Temer,

Sr Presidente do Senado, Senador José Sarney,

Sr. Procurador-Geral da República Dr. Roberto Gurgel, nomes que pronuncio e destaco e, fazendo-o, homenageio as demais autoridades presentes,

Colega Ophir Cavalcante, Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil

Senhoras, Senhores,

Colegas Advogadas, colegas advogados

MINISTRO CEZAR PELUSO (*)

Cabe ao veterano advogado militante – sem outros títulos senão o certificado da lixa do tempo, em uma tribuna que felizmente não confere promoção por antiguidade – a incumbência insigne de celebrar os novos dirigentes do Supremo Tribunal Federal, Presidente Cezar Peluso e Vice-Presidente Aires Brito, no pórtico da jornada que se vai iniciar.

Incumbência grata, devo dizer, em razão da afeição que me liga aos homenageados, juízes eminentes e advogado, por certo, mas todos observadores atentos da alma humana e, por isso mesmo, habilitados a depor reciprocamente e com conhecimento acerca das atividades que ilustram os nossos caminhos e das ideias e sentimentos que mais nos uniram na saudável convivência desses últimos anos.

* * *

Continuamos contemporâneos do futuro, buscando remédios mais justos e equânimes para as inquietações de nosso tempo. O secular instinto de liberdade e as aspirações de justiça social procuram fundir-se em medidas que superem as contradições sociais e econômicas, agravadas pelas crises financeiras, os contrastes ideológicos e os antagonismos políticos.

Esse Eg. Tribunal fez eco a tais inquietações visíveis em nosso país. Ameaças e abusos que tiveram como molas propulsoras certas forças policiais, alguns setores da Magistratura e do Ministério Público e uma expectativa social muitas vezes proveniente da fragilidade das informações. Mas com pulso forte, sem temer as deturpações dos polemistas de plantão, o Exmo. Sr. Presidente Gilmar Mendes, que conclui seu mandato na Presidência, defendeu com vigor os direitos fundamentais e as garantias individuais. Assim o fez no livre curso do debate forense e, por igual – visando alcançar grande parte da sociedade desinformada –, em oportunas e convincentes entrevistas dadas à imprensa, esclarecendo, em linguagem acessível, o que se passa na intimidade de um julgamento, de uma proposição jurídica, de uma preceituação constitucional.

A nação brasileira muito deve a V. Exa., Ministro Gilmar Mendes, que com seu destemor, sua vasta cultura jurídica e seu intenso labor deixa a Presidência, podendo se envaidecer justamente – sem prejuízo da notável administração que imprimiu à nossa Suprema Corte –, por haver corrigido os rumos de algumas instituições que se achavam à deriva do arcabouço constitucional no plano da observância das garantias que a Constituição reclama.

Não se compreende como se possa construir uma nação vigorosa, em que cidadãos aspirem o bem e a grandeza, pelo aviltamento do homem com o emprego de processos tenebrosos, desligados do sistema legal, que nele procuram sufocar e extinguir o quanto existe de nobre, de belo, de fecundo e criador, para reduzi-lo a um autômato, a um temeroso, acanhado pela degradação moral, arrancando-lhe tudo aquilo que nele mostra superiormente a presença do sopro divino. O nosso canto de vida é, agora mais do que nunca, um canto à justiça e ao Juiz que a torna viva, e o seu refrão há de ser a estrofe de Walt Whitman, em sua exaltação imortal ao juiz (**):

“Grande é a Justiça;

A justiça não é aquela feita por legisladores e leis... está na alma,

Não pode ser alterada por estatutos, não mais que o amor ou o orgulho ou a atração gravitacional, pois a justiça está nos grandes e perfeitos juízes da natureza .... está em suas almas (...)

O juiz perfeito nada teme.... poderia ficar cara a cara com Deus,

Diante do juiz perfeito todos recuam .... vida e morte recuam .... céu e inferno recuam.”

* * *

Vossa Excelência, Sr. Ministro Cezar Peluso, assume a Presidência do Supremo Tribunal tendo ao seu lado o Ministro Aires Brito, um humanista, um poeta, que, como profundo conhecedor da constituição brasileira, busca, notadamente nos princípios que orientam e comandam o nosso estatuto fundamental, a resolução para os conflitos judiciais. Posso afirmar que humanidade, no entendimento do Ministro Aires Brito, significa solidariedade social. E os princípios constitucionais, na visão de S. Exa., têm parte ativa entre os instrumentos democráticos que tornam concreta esta diretriz. Com uma visão social abrangente, marcante e didática na interpretação da Constituição, concede-nos a garantia de que o Supremo Tribunal, à luz de sua hermenêutica, estará em permanente alerta às ameaças e abusos praticados pelos outros poderes e nas resoluções dos conflitos.

* * *

Do ponto de partida de sua atividade luminosa até atingir a culminância que ora se inicia, V.Exa., Sr. Presidente Cezar Peluso, viveu plenamente, como participante ativo, todas as experiências e aflições do magistrado de carreira.

Iniciou-a em Itapetininga, no distante janeiro de 1968, seguindo-se as Comarcas de São Sebastião, Igarapava, até a Capital paulista, quatro anos após seu ingresso na magistratura.

Por dez longos anos esteve V.Exa. como juiz de primeira instância em São Paulo até a promoção por merecimento para o 2º Tribunal de Alçada Civil, onde oficiou durante quatro anos, sendo promovido, em 14 de abril de 1986, sempre por merecimento, para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Funções e ofícios que foram exercidos sem prejuízo do magistério, atividade intelectual que tanto o encantou e está entre as preferidas de V.Exa.

Marcas vigorosas se mantêm nos textos de sua lavra, desde os primórdios, no exercício da toga, até os dias dos quais somos todos testemunhas: a absoluta correção vocabular, o desdobramento lógico e a fulgurante clareza dos conceitos expressados.

O professor está presente no exercício erudito das teses, na riqueza da pesquisa, na solidez das ideias. Mas na hora da decisão – sem prejuízo das leituras e da cátedra, dos quais promana o denso conhecimento jurídico revelando o notável saber –, o resultado vem pontual com a aplicação do preceito fundamental e o restabelecimento do direito ofendido.

V.Exa. é o Juiz da realidade de seu tempo, aprecia os fatos que lhe cercam e, sempre que necessário – seguindo o exemplo, que a História consagrou, do Chief Justice Warren, conhecendo in faciem o grau de segregação em seu país, antes de dar seu voto decisivo –, V.Exa. também não hesita em conhecer diretamente os fatos visando fortalecer a decisão a ser tomada. Sempre foi assim, desde o início da sua carreira luminosa, como testemunha a obra autobiográfica que encantou o Brasil, Código da Vida, do colega advogado Saulo Ramos.

É esse exercício, raro entre os magistrados, mas tão salutar na construção e renovação do direito, que, ao lado da vasta cultura jurídica, permite-lhe a inabalável segurança com que pronuncia seus votos, na qualidade de relator ou partícipe do debate colegiado. Guardando, sempre, elegância no trato, que se revela na capacidade de ouvir antes de replicar, de reservar a mesma tonalidade – sem demasia no fortíssimo – para a discussão vibrante no respeitoso embate conceitual, que por vezes se estabelece nesse salão venerando.

Em certo momento, fazendo um retrospecto histórico, pude conhecer-lhe ainda melhor a pulsação. Estávamos em 1964. Ferido por uma explosão de insânia, o Des. Edgard de Moura Bittencourt foi punido pela ditadura militar, “condenado à dura pena de afastamento do cargo que foi o sonho realizado de minha mocidade”, como disse o saudoso magistrado em artigo publicado na Folha de São Paulo. Falecido vinte anos depois, coube ao então Juiz do 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo Cezar Peluso prestar as homenagens merecidas. Em discurso, celebrou-lhe a memória com um dos depoimentos mais pungentes que tenho conhecido, descrevendo o martírio e censurando a crueldade dos então curadores de plantão das instituições brasileiras.

Extraio trechos do discurso pronunciado naquela ocasião pelo Juiz Cezar Peluso:

“De sua vida, entretecida de fios da tragédia grega, martirologio romano e paixão hebraica, fica-nos a imagem imperecível de fidelidade à consciência e aos mais caros ideais da utopia humana. De sua morte uma exigência de reflexão institucional.

Jamais o atraíram os banquetes das oportunidades ou a medíocre rotina dos horizontes acabados. Espírito inquieto, privilegiadamente sensível às angustias e às palpitações da condição humana, conseguiu articular os valores permanentes do Direito com as mutações históricas. Preparou caminhos e antecipou veredas. Esteve além de sua época, como profeta do sentido jurídico. Não admira escandalizasse contemporâneos escravizados a fórmulas vazias e a preconceitos irremovíveis. A final, todo profeta é incomodo a estruturas e a padrões esclerosados.

Para afastar as suspicácias, não lhe bastaram a honradez pessoal, a integra devoção profissional, a sinceridade imperturbável do verbo, nem a romântica exemplaridade do convívio familiar. Mas, já indagara o velho cavaleiro do Palmeirim, “que prestam razões, onde não há razão”? (apud RUI BARBOSA, “Réplica”, vol. 11 pág. 111). A misteriosa iniqüidade, que grava o coração do homem, é insaciável e não o poupou.

Inventaram-lhe o pecado e não houve tempo por lhe inventarem o perdão. Eis a ironia da Historia. Se a alma grandiosa não pede tempo para anistiar e perdoar no ato mesmo da crucifixão, a catarse não prescinde da temporalidade, que é sempre limitada e não raro insuficiente. A Pilatos, Anás e Caifás, faltou-lhes tempo para refazer o tempo. Edgard de Moura Bittencourt não foi reempossado em todos os seus direitos e prerrogativas, nem restituído nos seus sonhos e esperanças.

Foi, no entanto, menos vítima do arbítrio rebelionário que do obscurantismo e intolerância informes, enquanto lhe deturparam as ideias, corromperam intenções, desfiguraram os gestos e conspurcaram a inocência. A tentação maniqueísta, que não desconfia dos enganos próprios e não se fia nas virtudes alheias, prepara, incentiva e preludia as grandes injustiças.”

Eis aí, Senhoras e Senhores, excertos de um depoimento indignado, doloroso, representativo de um período que a Historia jamais purgará, e que deve ser lembrado para que as gerações estejam atentas e oponham a mais severa resistência às tentações totalitárias.

E vem aqui reproduzido, afim de figurar nos anais do Supremo Tribunal a reminiscência histórica de seu Presidente, lembrança amarga de um suplício irreparável.

* * *

Uma vez foi a rebelião das massas que se considerava a grande ameaça. Golpes de Estado foram dados sob a falácia da proteção da sociedade organizada contra a subversão. Hoje, em nosso tempo, a principal ameaça vem de alguns que estão no topo da hierarquia social, numa ligação espúria com maus políticos e maus gestores. Esta notável mudança nos acontecimentos confunde muitas de nossas expectativas quanto ao curso da historia.

A democracia está hoje ameaçada não mais pelas massas, mas pela inconsciência das elites. Estas elites recusam-se a aceitar limites ou vínculos com a nação ou com lugares. Ao se isolar em suas redes, dividem a nação e trazem a idéia da existência de uma democracia para todos, fantasiada, para induzir a engodos, com designações falaciosas.

Isso explica porque estamos todos apáticos quanto à cultura comum e desinteressados em discutir política ou votar, escolher os governantes e os representantes legislativos. As elites, tendo se descartado de normas éticas, que a religião lhes proporcionava, e valendo-se da lassidão de alguns Estados, felizmente distantes de nós, agarram-se à crença de que, através da ciência e do lucro abusivo, associadas aos maus políticos, é possível dominar seu destino e escapar dos limites. E na busca desta fantasia, ficam fascinadas pela economia global. É uma rebelião que infortunadamente está acabando com tudo o que vale a pena no mundo ocidental e somente poderá ser contida eficazmente pela indelegável ação do Estado, como temos felizmente podido testemunhar em nossos dias.

* * *

Ao Supremo Tribunal Federal cabe significativa parcela nesse quadrante de nossa história contemporânea. Na Apologia de Sócrates Platão ressalta: “O juiz não é nomeado para fazer favores com a justiça, mas para julgar segundo a lei.” Mas há um conceito divergente, muito menos rígido, que busca conciliar o imperativo da lei, aprisionado nos códigos e na jurisprudência, com a percepção de uma realidade política e social essencialmente dinâmica. É um conceito que quebra o entrave do tecnicismo exacerbado, em beneficio da causa dos direitos humanos, das liberdades publicas e do equilíbrio social.

Muito mais do que garimpar textos e, com a ajuda de poderosas lupas, revolver – com as louváveis exceções de sempre – o que já passou, o que todos esperamos é que o Tribunal continue em harmonia com o sentimento nacional, fazendo viva a expressão de V.Exa. Presidente Cezar Peluso, dirigida aos novos Juízes, ao ressaltar em linguagem elevada, brilhante e sentenciosa: “A força do Judiciário é a força da própria sociedade civil, da qual é interprete.”

O Tribunal, assim, haverá de manter seu saudável equilíbrio, sintonizado com a política e ao mesmo tempo desligado dela, como tem sido no curso de sua longa historia, mostrando a todos quantos se envolveram na pesquisa dos fatos notáveis – que oferecem o grandioso cenário das muitas décadas vencidas –, que, ao contrario de uma famosa catilinária, muitas vezes repetida e sempre sem razão, foi o poder que menos faltou à república brasileira.

* * *

Há três milênios o Livro da Sabedoria adverte as gerações porvindouras, conturbadas ou felizes, na desordem ou na paz, que “a justiça é perpetua e imortal”. Guardemos, todos, a certeza de que teremos no comando do poder judiciário brasileiro o juiz que irá propagar esse principio de todos os tempos, o juiz cristão e amigo da verdade, como o queria a virtude teologal, e com todos atributos reclamados para a grandeza de seu sacerdócio, integro em julgar, integro em ouvir, servo da razão, da equidade e da tolerância, incansável no labor, e sobre quem – com o testemunho de Dra. Lucia de Toledo Piza Peluso, a esposa, a companheira querida da vida inteira, dos filhos Vinicius, Glais, Érica e Luciana, da nora, dos genros e dos netos – fazemos recair agora a brilhante imagem com a qual Rui Barbosa, o nosso pontífice maior, desvelou-se por inteiro diante da nação brasileira: “Às majestades da força nunca me inclinei. Mas sirvo às do Direito. Sirvo ao merecimento. Sirvo à razão. Sirvo à lei. Sirvo a minha Pátria. São essas as que eu reconheço neste mundo.”

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(*) Discurso pronunciado no Plenário do Supremo Tribunal Federal, em 23.4.10, pelo advogado Pedro Gordilho, por ocasião da solenidade de posse do Ministro Cezar Peluso na Presidência.

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