terça-feira, 13 de setembro de 2011

POETA DO CURRAL VELHO


Desde a época em que velhos automóveis trafegavam por uma central de terra batida, desviando-se dos inúmeros buracos com as habilidades de malabaristas e a poeira ia se levantando, cobrindo meio mundo a indicar que vinha um carro pela BR 404, já toda asfaltadinha, mas só no papel, ou então era o Misto do Seu Zé Padre que já ia, com a carroceria carregada de mercadorias e os passageiros bem acomodados nas boléias e com os sentidos aguçados, pois desceriam na próxima parada, é que sabemos: no Curral velho era tempo de poeta, pois ali versejava com engenho e arte, como um cancão acuando as cobras na mata espinhosa da caatinga, um sertanejo chamado Sebastião Ferreira do Bonfim.

Agora que a central é realmente uma pista bem pavimentada e que o tempo encurtou as distâncias e a brevidade nos obriga a novas desenvolturas, a rejuvenescida pista continua a nos levar aos mesmos locais que antes, numa paisagem nem tão semelhante à de outrora, mas percebemos satisfeitos, que por lá continua sendo a mesma época de poetas. Alguns dos vates que beberam nas cacimbas do riacho serrote criaram asas e levantaram vôo, rumo a um horizonte sem fim, tornaram-se poetas-doutores, poetas-professores, todos airosos. Mas outras sementes que brotaram por lá, ficaram e foram troando como trovões na terra dos Bonfins, retumbando suas estrofes a pleno pulmão num meio dia de um sol estorricante. Como a sericora que embeleza as margens das lagoas com seu canto vespertino ou a esbelta sariema que pasmaceia o ar com seus cortantes versos, vi admirado o poeta Antonio de Lisboa Bonfim, o bonachão e já grisalho Lisboa a soltar seu belo canto e a confirmar que, por lá, onde antes era os velhos currais de gado, continua um abundante celeiro de poetas.

Curioso, pergunto só para começar a nossa conversa: Lisboa, como é que você faz os seus versos?

Responde-me rápido: Não faço! Eles vêm em qualquer canto, aqui na mercearia ou onde eu estiver.

De supetão, pergunta-me: O que é a saudade? Ele mesmo me responde, em versos:

“Saudade é um parafuso
Que dentro da rosca cai,
Só entra se for torcendo,
Porque batendo não vai.
E quando atarraxa dentro,
Nem torcendo não sai!”

Isso é a saudade!

Percebo o potencial no sorriso solto, como quem sabe que já domou o mundo com todos os seus apetrechos, inclusive a tal felicidade, que transborda de seus olhos claros. E se fores por lá, comprar algo para mantença do corpo ou tomar uma, bem geladinha, escorado num balcão que é uma ampla janela, prepara-se para sair com os bolsos abarrotados de versos e a alma leve pela poesia que aflora do lugar. Imploro por outras, de suas rimas.

Ele concorda, mas com a condição de que eu lhe responda uma pergunta no final e afirma que, se não responder, iria me chamar de mentiroso. Desfralda o poema:

“ Tudo depende de sorte,
Até para lavar roupa.
No dia que o sol não sai,
A roupa não cora bem,
Você quando está de azar,
Vai dar um peido e a merda vem!

Já aconteceu com você? Era a ameaçadora pergunta. E respondo de imediato: - Já!!! A risada é geral, que ecoa pelos quatro cantos do Curral Velho.

Ele aproveita o clima de alegria ali gerada, mas que germinava mesmo era de sua simplicidade, para lembrar mais uma estrofe e eu aproveito para recordar o poeta das figuras, naquele calorento dia de setembro, o espanhol Pablo Picasso, que uma vez disse: Há pessoas que transformam o Sol numa simples mancha amarela, mas há aquelas que fazem de uma simples mancha amarela o próprio sol... Lisboa cintila os versos como os raios de sol clareando o dia:

Bezerra de vaca preta,
Onça pintada não come.
Quem casa com mulher feia,
Não tem medo de outro homem.
Quem casa com mulher bonita,
Leva chifre, mas não passa fome!

Ainda nos brinda com o duelo de dois cantadores, primor de história que ele criou em rimas:

Um cantador disse:

Cachaça matou jacinto,
Homem muito trabalhador,
Sentença de mão cortada
Para a cana que não plantou.

O outro disse:

Cachaça não matou jacinto,
Porque ela não tem esse poder,
Quando ele foi beber
Já estava era para morrer.

O poeta Lisboa é assim, sabe fazer de pequenos instantes grandes momentos. Pergunta-me: Você já ouviu falar no sitio Cagajá Ele sabia que eu não sabia! E continua: a rapadura de lá era três partes de sal e uma de doce ruim. Papai me mandava buscar uma carga e eu comia era muito por lá. Vamos aos versos:

Fui uma viagem
Com destino de voltar,
Porém tive que passar
No sitio Cagajá.
Andei quatorze léguas
Sem a calça abotoar.
Oh, caganeira de lascar!

O poeta Lisboa é como um passarinho cantando no terreiro, uma alma liberta, numa coexistência pacifica com o lugar. Um grande contador de historias que só perde que não for ouvi-lo por lá. Quando ele se despede da gente já vai deixando saudades e avisa, assim:

Olhe!!! Eu sou contador de historia...
Não confunda aroeira com aurora,
Não confunda rabicho com rabichola,
Eu sou contador de historia!!!

Vá lá! Confirme no brilho dos olhos do Lisboa onde mora a poesia! E ao chegar, não deixe de cumprimentar um gato preto que está sempre deitado na cadeira de seu dono, é um velho mago, que se faz de ajudante do poeta Antonio de Lisboa Bonfim.

Raimundo Candido

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