terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

FLORENTINO DE ARAÚJO CARDOSO FILHO



Antigos pergaminhos e a auricular tradição rezam que, na antiguidade, em uma ilha grega chamada Cós, nasceu um cidadão cuja vida seria um culto permanente ao estudo das linhas nobres que dão vida e luz ao corpo humano. Era um asclepíade, membro de uma espécie de corporação de mestres da saúde que dizia descender do próprio Asclépio, o Deus da Medicina.

Esse insular ser tornou-se um peregrino da arte médica. Atendia seus consulentes à sombra de árvores, ao ar livre. Perambulava de cidade em cidade recolhendo observações e compartilhando saberes. Em 430-429 a.C., uma grande peste assolou a cidade de Atenas. Através do seu olho clínico identificou existir uma categoria – a dos artesãos (por dever de ofício guardava intimidade com o fogo) – que parecia imune ao contágio da doença. O sábio orientou que se acendessem fogueiras como forma de estender a imunidade a toda à população. Ao que se sabe a epidemia se extinguiu depois que Hipócrates mandou acender fogueiras por toda a cidade.

O fato é que o filho da ilha de Cós ganhou da História o honorável brasão de Pai da Medicina. Sua aura popular atravessou a madrugada dos séculos não só pelos tesouros científicos que extraiu, mas em especial pelos pórticos morais que erigiu. Gotejando sabedoria e humanidade, regou com serenidade e discrição para a posteridade o jardim suspenso do médico ideal. Inscreveu, nas éticas tábuas da devoção à vida, um juramento definitivo: “Eu, solenemente, juro consagrar minha vida a serviço da Humanidade. Darei como reconhecimento a meus mestres, meu respeito e minha gratidão. Praticarei a minha profissão com consciência e dignidade. A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação. Respeitarei os segredos a mim confiados. Manterei, a todo custo, no máximo possível, a honra e a tradição da profissão médica. Meus colegas serão meus irmãos. Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais intervenham entre meu dever e meus pacientes. Manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção. Mesmo sob ameaça, não usarei meu conhecimento médico em princípios contrários às leis da natureza. Faço estas promessas, solene e livremente, pela minha própria honra.”

Foi por sobre esse invisível tapete mágico da história tecida pelos mestres da arte da cura que o crateuense Florentino de Araújo Cardoso Filho chegou ao topo da representação associativa médica nacional. Assumiu, há poucos meses, a Presidência da Associação Médica Brasileira. É o primeiro brasileiro fora do eixo sul-sudeste a presidir a entidade nos seus mais de sessenta anos.

“Herdei a emotividade da minha mãe e a vontade de trabalhar do meu pai” – confidenciou ao chegar ao cargo máximo da Associação Médica Brasileira. Em Crateús, onde mirou a primeira roupa branca de médico e aprendeu a soletrar o alfabeto do sonho, viveu até os doze anos de idade. Às margens do Poty fez o batismo de consagração á carreira de Hipócrates. Imaginava conquistar um Diploma e retornar ao leito umbilical. Porém o curso do rio da História o conduziu a outras paragens. Após se formar pela Universidade Federal do Ceará (onde também colou grau de mestre), fez Residência Médica em Cirurgia Geral e Cirurgia Oncológica no Rio de Janeiro, com incursões pelos Estados Unidos. Atingiu um grau de especialização que o impediu de retornar a Crateús.

Embora optando por ficar em Fortaleza, tinha na mente uma clara certeza: fazer da medicina um serviço à humanidade. Ao invés de fechar-se no espaço bitolado dos que querem apenas acumular a prata deste mundo, resolveu ser um profissional do setor público. Encarando a medicina como um serviço ao próximo, buscou e busca dignificar a profissão atuando na congregação dos pares e na intervenção cirúrgica na sociedade, a fim de que o conjunto da população possa sentir os efeitos de um melhor sistema de saúde. Fez da luta associativa médica sua principal bandeira. Destacou-se na vanguarda dos médicos cearenses até pontificar na liderança nacional da categoria.

A faceta de gestor operoso teve seu ápice quando assumiu a direção do Hospital Geral de Fortaleza – HGF, ocasião em que profissionalizou a gestão daquela instituição. Em dezembro de 2009, estava com a família em uma viagem internacional quando foi instado, por telefone, a enfrentar o desafio de comandar o complexo hospitalar da Universidade Federal do Ceará, que inclui o Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC) e a Maternidade Escola Assis Chateaubriand (MEAC). Foi lá, na sala da Superintendência que ele me recebeu outro dia e discorreu sobre a sua trajetória e os projetos que toca atualmente na AMB. Entre outros, o de enfatizar o foco cientifico e melhorar a saúde pública. Falou com entusiasmo do Projeto de Lei de Iniciativa Popular que obriga a União a destinar 10% da Receita Corrente Líquida para o setor, o que significa um incremento de 35 bilhões no orçamento da saúde. Considera que, além de combater os desvios, é necessário trabalhar a formação profissional, a qualidade dos médicos lançados ao mercado. Quer inserir o Ceará no centro dos grandes debates. Para 2013, no centenário da Associação Médica Cearense, vai trazer para a terra da luz a Assembléia Geral da Associação Médica Mundial.

Indago-lhe sobre a família. Fala que tem, na intimidade do lar, um esteio essencial: a prima Rachel Cardoso, esposa, e os filhos Amanda (17 anos, já estudante de medicina), Daniel (15 anos) e Maria (10 anos).

Peço-lhe uma mensagem final... O semblante pétreo e forte, como os monólitos e os mares bravios do Ceará, dá lugar à divagação e à brandura. Aos poucos a solidez do olhar é tomada por um melancólico líquido de lagoa noturna do sertão. Orienta a respiração e sussurra uma carteirada existencial recolhida do genitor, um filósofo com pouco tempo nos bancos escolares, de quem herdou o amor laboral: “Muito cedo aprendi que nada vence o trabalho e a dedicação. O conhecimento ninguém lhe tira”.

(Júnior Bonfim, na edição de hoje do Jornal Gazeta do Centro Oeste e na Revista Gente de Ação)

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