segunda-feira, 27 de maio de 2013

O CRIME DO CASARÃO



Como as borboletas, que passam por uma metamorfose, as ocasiões explodem de seus casulos, após uma longa maturação, só para que os eventos se reagrupem nas prateleiras do mundo. Desabrochar é, simplesmente, uma exigência primordial da vida. O Universo em sua essência é um desejo de manifestação, em eclosão! O ano de 1925 desenrola-se de seu invólucro filamentoso, no sul do País, trazendo o perfume de modernidade, pela química mental de Osvaldo de Aranha e pelos fecundos pincéis de Tarsila de Amaral, que lançam o manifesto de poesia chamado Pau-Brasil, enfatizando a necessidade de brotar, de ressurgir nativamente, como vida nova.

No mesmo antropófago ano, nos Sertões de Crateús, não saímos do capucho. Quase nada acontecia de singularidade, nem pelas bucólicas ruas, nem pelas lúgubres praças, sequer pelos corações ou pelas almas dos citadinos, pois em tudo reinava uma rusticidade habitual e uma calma fora do comum. O passado existe no presente demente e o futuro nunca virá.

A luminosidade já se dissipa num crepúsculo vespertino no mês de julho desse mesmo ano e Dona Antônia Mirandolina Pinto não larga a camisa, nem a batina, ainda manchadas de sangue do saudoso Padre Antônio Cavalcante de Macedo e Albuquerque, seu primo. Tudo é reminiscência nas enodoadas vestes sacerdotais do Padre Macedo. Foi um crime vil, ocorrido há 27 anos. Ela recorda o tempo em que se impôs um Padrinho Vigário!

Macedo foi um Padre Colado, de 1859 até 1898, na Vila Príncipe Imperial. O título de colado era fornecido pelo governo imperial, para depois ser aprovado pelas autoridades eclesiásticas. Um sacerdote zeloso às necessidades espirituais, mas também atentava ao lado social e político de seu rebanho, condizente com um líder religioso da época.

Havia percebido que o prédio da Igreja da Matriz, Freguesia do Senhor Bom Jesus do Bonfim de Príncipe Imperial, precisava urgentemente de cuidados e ordenara a venda do gado do Padroeiro da Paróquia, nas fazendas Bom Jesus e Casa Nova, para pagar o material de construção que seria usado na reforma. Só não esperava que a frente da capela ruísse, inesperadamente, com aquele grande estrondo que apavorou toda cidade. Foi a Divina Providência quem protegeu tudo, não havia ninguém na hora e nada houve com os altares de Nossa Senhora e São Sebastião que ficam atrás da grade que dividia a nave ao meio. A Capela-Mor praticamente é a mesma construída pelos pedreiros e carpinteiros trazidos da Bahia por Dona Luiza Coelho da Rocha Passos, em 1772.

O dia mais importante no casarão do Padre foi quando ele recebeu, como hospede, o ilustre poeta e historiador cearense Antônio Bezerra de Menezes. O célebre escritor que viajava a serviço da Província do Estado colhendo dados geográficos e políticos das cidades, dos povoados, das vilas do Ceará e, por longos e penosos seis meses andou montado em lombos de animais para escrever o Livro Rotas de viagem. Havia descido a ladeira do Ipu, mas antes passara pela Gruta de Ubajara e por Ibiapina, seguira para ipueiras, passando pelo Distrito de Paz (Santa Quitéria) e agora estava na vila de Príncipe Imperial, mas não demoraria, pois teria que ir à São João do Príncipe (Tauá).

O grande historiador relata sua aventura pelo interior da Província, em 1884, onde registra as seguintes impressões sobre o Padre Macêdo: “Precisando de informações mais circunstanciadas acerca da vila, me dirigi à casa do Reverendo Vigário Macedo, homem respeitável por sua idade, sua delicadeza, sua inteligência, que pouco adiantado ao que eu havia colhido de outros, presenteou-me com uma preciosidade encontrada na profunda escavação que fez o rio Poti na grande enchente de 1879. Era a extremidade superior ou pelviana do fêmur de um mamífero extinto. . .” E continua narrando seu encontro com o sacerdote: “Referiu-me o Padre Macêdo que o rio Poti, rasgando uma das margens, deixou sobre à terra uma ossada de um animal tão descomunal, que o povo fazia das vértebras cadeiras, e as omoplatas de muitos palmos de comprimento servia de tábuas, sobre as quais as lavadeiras batiam a roupa.” E Conclui: “A população é cuidadosamente arrolada pelo Reverendo, que me informou conter a vila 900 almas, e toda a freguesia 4.300 pessoas.”

A poeirenta Vila tinha sido transferida para o território da Província do Ceará há pouco tempo, e não demorariam em elaborarem um decreto batizando-a por Cratheús, terra dos guerreiros Kara-thi-us.

Na época em que as decisões políticas desabrochavam como de um casulo no seio da igreja, onde se processava até as eleições, o Padre Macedo tem uma atuação política intensa, e chegou a ser eleito Deputado Provincial pelo Piauí. Publicou uma carta denuncia no Jornal “O Cearense”, em 09/12/1856, acusando o Coronel Joaquim Domingos Moreira, chefe político em Crateús como um dos implicados no perverso assassinato do padre Inácio Ribeiro de Melo.

Certa vez ocorreu um desentendimento entre o Padre Macêdo e o coronel Jacob de Melo Falcão. O Coronel chamara o padre de “ladrão” e esse processara o coronel, resultando em um compensação monetária determinada pela justiça, de 5.000$000, um grande prejuízo ao bolsos do referido coronel. O riquíssimo fazendeiro Jacob foi o 1º Intendente (prefeito) de Crateús e guardava seu ouro e a sua prata em três Mocós (grandes bolsas de couro de bode em forma de gotas d’água). Além de mesquinho extremoso, tinha o apelido de Casca Grossa, coisa que o deixara muito irritado. A despensa da casa do velho Intendente era repleta de mantimento, chouriço, carne de gado e porco pré-cozidas na banha para durar longo tempo, tinha ainda longas tábuas com rapaduras, queijos e manteiga da terra, mas tudo trancado a sete chaves e se um filho saboreasse alguma coisa, era uma surra na certa. O verdadeiro Senhor Nonô da novela. Muito severo com os filhos, tratava-os como se fossem animais, mas para gente de fora era amável e cortês. O povo dizia: O Casca Grossa tem Boca de mel, coração de fel! Coronel Jacob, o inimigo de Padre Macedo, era um sujeito vingativo e ficou remoendo uma desforra.

Após um dia de atividades eclesiásticas, resolvendo questões sagradas e profanas que sempre apareciam na sua frente, o Padre Macedo deixa o sacristão encarregado de bater no sino da Igreja as costumeiras badaladas das nove da noite e dirigiu-se à sua residência, um soberbo casarão por trás da Catedral, do lado esquerdo de um terreno baldio, muito bem arborizado. Não ver a hora de tirar a pesada batina preta, fazer uma refeição leve e orar para que Deus lhe conceda forças, espirituais e físicas, para completar os 40 anos à frente da Igreja do Senhor do Bonfim. Às noites da Villa Príncipe imperial é um descampado de solidão e a pálida lua é uma prerrogativa dos gatos e dos ébrios!

Ao ver uma jovem mulher choramingando pelos cantos da cozinha, o Padre percebe que houve um desentendimento domiciliar e procura se inteirar do que houve. As senhoras que cuidam do seu bem estar, logo revelam: - Foi o Adriano, meu Padrinho, que agora inventou um enxerimento e umas gaiatices com a gente! O cansaço imediatamente desaparece, pois o sangue fervilha por todo corpo do sacerdote de 65 anos e vai, colérico, confronta-se com o criado desrespeitoso.

- Mas que é isso, Adriano, você não pode desacatar as mulheres da minha casa!

O olhar faísca de raiva e parte para cima do criado, mas o Padre não ver o brilho do metal refletido no ar, nem o lance da mão assassina na intenção malévola. A lâmina amolada rasga a imaculada batina preta, e mancha a camisa branca com o rubor da vida que escorre pelo corpo do Padre Macedo.

Adriano pula a janela e livre, ganha à rua, escorrendo como uma sombra pela noite angustiante, enquanto o sacristão badala no sino da Matriz, ainda sem o adorno das suas duas torres. A morte é uma entidade imaginária que ceifa à vida quando menos se espera. E há algum tempo, um poeta crateuense, o Coriolano, que por longo tempo estivera esquecido e agora é revivificado, deixara uns versos langorosos sobre a vida e a morte: “É breve o viver d’aurora / Mas nessa vida d’uma hora / Brilha, fulgura e colora / Tudo ao seu alvorecer / Pura nasce e morre pura / Não sabe se há desventura, / Mas a humana criatura / Nasce e sofre até morrer.”

Tudo que não é lembrado se estiola, se olvida, como a grama que privada da luz do sol se acinzenta e morre. Dona Mirandolina agarrada na batina manchada de sangue do seu querido primo ainda desconfia da causa da morte do Padrinho Vigário e pergunta-se: Quem realmente matou o Padre Macedo, se a lâmina afiada e vingativa dos temperamentos políticos ou o enigmático acaso de um instante gratuito? Coisas que nem os poetas sabem explicar.

Passo, como sempre faço, em frente à belíssima Igreja da Matriz, o signo maior dos Sertões de Crateús, reverencio o disposto galo da Torre direita e também me pergunto: “Quantas vezes o Padrinho Vigário Macedo sonhou com este alto prisma erguido aos céus e nem imaginou que, um dia, poderia estar empoleirado no seu ápice!”

Raimundo Cândido

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