terça-feira, 13 de agosto de 2013

ERROS DE PAI


Vez por outra, quando me sento para o exercício da escrita dessas crônicas, sinto como que uma cancela na alma, um aroma travoso na língua, uma barra de obstáculo à frente da corrida elaborativa. O tema irrompe como um relâmpago, porém o corpo/conteúdo fica invisível. Sei que esse hiato mental há que ser creditado à ausência da sintonia essencial, aquela que nos faz caudatários das águas barrentas ou claras do aprendizado superior.

Hoje senti um pouco isso. Pensei em escrever algo a propósito do Dia dos Pais, ocorrido no segundo domingo de agosto. Mas... O que dizer? Há um universo de loas, um oceano de mensagens que exaltam o esplendor realizacional e os efeitos prazerosos da paternidade. O que acrescentar?!

Imaginei, então, além de citar esses búzios da mandala humanística espalhados nas praias da sabedoria universal, juntar umas breves sílabas de auto-avaliação e enfatizar “erros de pai”.

A professora que amo me ensinou que: “Nada é nosso, nada temos, nada nos pertence!/ Mesmo quando, por nossas mãos,/ Brotam ramos de estrelas,/ Rosas de ternura,/ Pétalas de candura,/ Somos apenas instrumentos musicais/ Regidos por um Artista Superior!”

Um dos nossos maiores erros é o egoísmo: acharmos que somos donos dos nossos filhos. Não, eles não são propriedade nossa. Gibran Khalil Gibran, há cerca de um século, ensinava que “Vossos filhos não são vossos filhos. São filhos e filhas da ânsia da vida por si mesma. Vêm através de vós, mas não de vós. E, embora vivam convosco, a vós não pertencem. Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos, pois eles têm seus próprios pensamentos. Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas; Pois suas almas moram na mansão do amanhã, que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.”

Somos, sempre e a cada instante de iluminação, veículos transportadores. Um texto primoroso, um desenho mágico, uma formidável coluna de arquitetura, uma admirável obra de arte ou qualquer outra engenhosidade que germine no solo fértil da mente humana, é sempre resultado da inspiração Superior agindo através de nós.

Filhos. Com os Filhos, também e principalmente, ocorre esse fenômeno matrimonial místico de sol e lua. Nenhum filho é gerado a partir da exclusividade existencial de um pai ou de uma mãe isoladamente. Filho é produto de um acasalamento, de uma união, de um coito – mesmo fugaz ou, em certos casos, contra a vontade de uma das partes – mas sempre de um imbricamento qualquer, ainda que laboratorial.

A melhor imagem para essa relação genitores e filhos é a do leito de um rio. O leito não é a nascente do rio, tampouco sua foz. Não é o inicio, muito menos o fim. O leito é o sulco, o canal, o rego, o córrego, o móvel, a superfície sobre a qual a água se estende para cumprir um roteiro, para seguir o itinerário do mar. A grande tentação nossa é imaginar que somos a fonte ou desaguadouro dos filhos.

Artur da Távola escreveu que “ser pai é atingir o máximo de angústia no máximo de silêncio. O máximo de convivência no máximo de solidão. É, enfim, colher a vitória exatamente quando percebe que o filho a quem ajudou a crescer já, dele, não necessita para viver. É quem se anula na obra que realizou e sorri, sereno, por tudo haver feito para deixar de ser importante”.

José, o artesão-carpinteiro casado com Maria, escolhido patrono da passagem terrena de um Filho chamado Jesus, é indiscutivelmente o mais modelar exemplo daquilo que o Artur da Távola partilhou no banquete da reflexão. A vida de José foi um portal aberto à luz dos sonhos e, ao mesmo tempo, uma sombra discreta no mundo. Diferentemente de nós, pais da atualidade, que apreciamos o exibicionismo (seja nosso, seja dos filhos), José cultuava o anonimato. Era justo nas ações, trabalhador no quotidiano. Assumiu a gravidez de uma mulher sem expô-la à censura coletiva, pois tinha consciência da sua condição instrumental. Enfrentou a perseguição de Herodes, o poderoso de plantão, com serenidade e sem alardes. Vivia em perfeita vinculação com o Inefável. Apontou para o Filho a montanha ética e a planície profética. E se recolheu à gruta do anonimato.

Alguns séculos depois, um escritor português - também dito José e uma espécie de mago na carpintaria das letras - esculpiu uma moldura extremamente elucidativa da condição paterna. Embora se proclamasse agnóstico, José Saramago foi, sem o saber ou verbalizar, um fio elétrico divino que energizou de humanismo a literatura universal. Soou extremamente feliz quando utilizou o instituto do ‘empréstimo’ para se referir à figura do filho. Disse ele: “Filho é um ser que nos foi emprestado para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem. Isso mesmo! Ser pai ou mãe é o maior ato de coragem que alguém pode ter, porque é expor-se a todo o tipo de dor, principalmente o da incerteza de agir corretamente e do medo de perder algo tão amado. Perder? Como? Não é nosso, recordam-se? Foi apenas um empréstimo.”

(Júnior Bonfim, na edição de hoje do Jornal Gazeta do Centro Oeste)

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