domingo, 2 de março de 2014

O CARNAVAL ELEITOREIRO

As cenas são lúgubres e estampam o drama cotidiano de milhões de brasileiros. O cidadão, lutando contra um câncer, toma injeção na veia para aliviar as dores em um estabelecimento hospitalar de Osasco, sob a luz do celular de um parente. Ao lado do Pronto Socorro de urgência, luminosa placa exibia a propaganda do Governo e as lâmpadas acesas sobre o campo, com destaque para a pomposa propaganda: “Futebol Iluminado”.

No mesmo dia, em Guarulhos, outro cidadão, com o fêmur quebrado, esperava há 15 dias para ser operado, com a desculpa do secretário municipal de Saúde: “lamento muito não poder oferecer melhores condições no nosso hospital”.

Terceira cena: na cidade de Codó, no Maranhão, uma mulher, acusada de tráfico de drogas, está há 9 dias algemada numa cadeira à espera de vaga no famoso Presídio Feminino de Pedrinhas, em São Luís.

O que se pode dizer desses atos ocorridos na última semana? Que o descalabro dos serviços públicos continua aprofundando o fosso das mazelas nacionais.

Chama a atenção nos flagrantes a absurda falta de sensibilidade dos gestores públicos no trato das tarefas sob sua responsabilidade.

Não seria mais adequado instalar um gerador nos Prontos Socorros do que deixar iluminado por toda a noite e madrugada um campo de futebol?

Será que em tempos de eleição, placas luminosas não precisam enfrentar a ameaça de apagões?

Não seria mais prudente que o Hospital Municipal de Guarulhos desse prioridade ao atendimento de casos graves, que exigem ações cirúrgicas imediatas?

O lamento da autoridade da saúde é um deboche, algo do tipo “se não gostou do nosso estabelecimento, chispe daqui”. Deixar alguém amarrado numa cadeira dias seguidos é uma cena que nos leva de volta ao faroeste americano.

Como se vê, situações como essas acontecem não apenas nos fundões do país, mas nas proximidades da maior metrópole brasileira. Calvários cortam o chão do território. Mas o clima constante de festa é um anestésico para as massas.

Entramos no carnaval e, logo mais, teremos a Copa do Mundo; em sequencia, as férias de julho, culminando o 2º semestre com a demagogia eleitoral. O ano será catártico. A essa altura, os malabaristas da política começam a vestir as fantasias com que desfilarão no palco. A alegoria de Narciso é a mais cobiçada.

Conta a lenda que ele se tomou de amores pela imagem quando se contemplava nas águas transparentes de uma fonte. Obcecado pelo reflexo, Narciso, olhando para a água, definhou até a morte.

O Brasil está cheio de narcisos. E também de alunos do cardeal Mazzarino, aquele que sucedeu Richelieu como primeiro-ministro da França e escreveu o famoso Breviário dos Políticos, onde ensina a arte de simular e dissimular.

Nos próximos tempos, a turma do lero-lero encherá os nossos ouvidos com uma peroração cheia de refrãos. Juntar-se-ão a ela os gabolas e salvadores da pátria, palanqueiros, bonachões e misericordiosos, no encontro do ruim com o pior, de Narciso com Justo Veríssimo, personagem do saudoso Chico Anísio.

Teremos de assistir, durante 45 dias seguidos, a uma lengalenga na TV, espetáculo de auto-glorificação, a denotar que em matéria de campanha política o Brasil pouco avançou. Nesse ciclo, a política se transformará naquilo que Paul Valéry temia: “a arte de impedir que as pessoas cuidem do que lhes dizem respeito”.

O artificialismo acabará sugando aquilo que poderia ser essencial. As propostas serão amontoados de matéria plástica. Os atores se esforçarão para espetacularizar performances. Governistas tocarão a trombeta de feitos extraordinários; oposicionistas solfejarão as notas baixas do país que ficou no buraco, cada qual puxando altas doses de distorção.

Comum a todos será a perda do sentido de realidade. No espetáculo de mistificação das massas, prestigitadores se desdobrarão para fazer crer que o discurso é ação, que o verbo é a obra, que sua palavra é a encarnação da verdade.

A retórica palanqueira atingirá os píncaros, a lembrar a historinha baiana. Embevecido com a fala complicada de seu candidato, cheia de palavras difíceis, o eleitor não cansa de bater palmas para concluir categórico: “não entendi nada do que o ele falou, mas falou bonito; vai levar meu voto”.

Ou lembra o caso do passarinho sufocado. Arrebatado, espumando energia cívica, o candidato a deputado discorre sobre a liberdade. Para induzir a multidão à catarse, levou um passarinho numa gaiola, que tencionava soltar no clímax do discurso.

No momento apropriado, tirou o passarinho da gaiola, pegou-o e lascou o verbo: “a liberdade é o sonho do homem, o desejo de construir seu espaço, sua vida, com orgulho, sem subserviência, sem opressão; Deus (citar Deus é sempre recurso dos demagogos) nos deu liberdade para fazermos dela o instrumento de nossa dignidade; todos vocês, aqui e agora, devem se comprometer com o ideal do homem livre.

Para simbolizar esse compromisso, vamos aplaudir a soltura desse passarinho, que ganhará os céus da liberdade”. Ao abrir a mão, esmagara o passarinho. Frustração geral. Vaias substituíram a euforia. Um desastre. No palanque político deste ano, muitos tentarão sufocar a razão com o espasmo da emoção.

Como os milhares de candidatos no pleito de outubro poderiam melhorar seu discurso? Tomando um banho de realidade. Seria mais útil se fizessem um estágio em estabelecimentos hospitalares para ver o exercício de dar injeção no escuro em pacientes com graves problemas de saúde; usarem ônibus e metrôs na hora do pico; tomarem banho em banheiros das comunidades miseráveis; e passearem à noite em ruas de bairros centrais ou periféricos das grandes cidades.

O papel de herói está aberto. Aceitam-se inscrições. Quem há de acreditar, porém, em político vestido de São Jorge com a espada na mão para matar o dragão da maldade? O tufão social que percorre o país desde os idos de junho do ano passado ameaça engolir “guerreiros” treinados na arena da velha política ou santos de ocasião.



Gaudêncio Torquato

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