sábado, 5 de abril de 2014

O JOSÉ WILKER QUE EU CONHECI DE PERTO

Todos estão no noticiário da televisão falando de José Wilker.

Wilker era muito talentoso e extremamente inteligente. O que emocionava nele era justamente o seu talento. Mas não era uma pessoa de se expor a todos que conhecia. De abrir sua alma, seu coração. Não era um emotivo.

Os que vejo falarem com mais propriedade sobre o ator são os veteranos. E quando a repórter pede histórias pessoais, Eva Wilma, a rainha da sensibilidade, lembrou-se dos livros de poesia que ele levava e distribuía ao elenco em que atuaram.

Wilker era um homem reservado de alma. Trabalhamos juntos antes de ele debutar na TV. Tinha chegado do Ceará e já despontava como o mais brilhante ator de sua geração no Rio de Janeiro, depois de seu extraordinário desempenho em O arquiteto e o Imperador da Assíria, no Teatro Jovem, de Ivan de Albuquerque e Rubens Corrêa, que lhes abriram a porta dos palcos nacionais, do estrelato e até da casa, pois morava num apartamento de Rubens.

O ano era 1972. A peça era A Mãe, de Stanisław Ignacy Witkiewicz, e, para dirigi-la, a produtora e protagonista do espetáculo, Tereza Rachel, importou o maior diretor da época na França, Claude Régy, que assinou a montagem no Théâtre Récamier, em Paris, assistida por Tereza com Madeleine Renaud no papel título.

Wilker foi convidado para protagonista masculino, o “filho da mãe”. Para o terceiro principal papel da peça, a noiva de Wilker, vivida na montagem francesa por Delphine Seyrig, foram abertos testes. Candidataram-se todas as jovens atrizes de 20 anos do país. Tive a sorte de ser a escolhida.

Grande elenco, grande experiência, grandes amigos. Foi também a estreia no Rio de Janeiro de Aderbal Freire como ator, hoje um grande diretor.

Tivemos todos um contato muito próximo. Foram meses de ensaios intensos. Naqueles anos, os ensaios estendiam-se por quatro, cinco, às vezes seis meses.

Ensaiávamos no clube judaico da Rua das Laranjeiras, Wilker costumava beber antes do ensaio. Nos intervalos. E depois. Acho que para encarar o diretor francês, nada fácil. Fase da pobreza, a pedida do ator era conhaque Dreher. Chegava, pedia um cálice no bar do clube e virava num gole.

Wilker gostava de falar por metáforas, hipérboles, parábolas. Inteligentíssimo e complicadíssimo. Antes que o diretor o confundisse, ele, que não falava francês, o pôs lno bolso.

Jogava um charme louco sobre Claude, que acabou literalmente apaixonado pelo ator, que lhe escorria entre os dedos, num jogo de sedução de gato e rato, de ironia, po que não passava, eu acho, de uma estratégia de Wilker para desempenhar seu personagem sem ser desestabilizado pelo diretor.

Bom que se saiba que, através de sua técnica angustiada e angustiante de direção, Claude Régy levou Tereza Rachel praticamente ao paroxismo de desespero.

No final, o diretor jogou-nos as duas no chão do palco, esfomeadas, comendo macarrão frio catado no piso, descabeladas, envergonhadas, sem blusa, irreconhecíveis, com os rostos cobertos por máscaras brancas.

Apenas Wilker se salvava em cena. Belíssimo, de malha preta, corpo de toureiro, make up de Nureiev. Ah, Wilker sabido!

Ali aprendi uma lição: José Wilker era um sobrevivente em qualquer circunstância – da aridez nordestina à angústia de um diretor, que não conseguia transmitir o que pretendia a um elenco em que poucos entendiam o idioma que ele falava.

O espetáculo era lindo. Os cenário e figurinos de Joel de Carvalho, maravilhosos. A direção, muito elogiada. Nossos desempenhos, idem. Mas, quanto sofrimento!

Wilker, o inteligentíssimo Wilker, o extra-talentoso, que entendia das manhas dos artistas manhosos, manteve-se blindado e indestrutível, esteve hors concours em cena!

Acho que foi o único ator no mundo que conseguiu dar a volta no diretor francês com sua tática de desestabilização que levou algumas atrizes famosas aos consultórios de psicanálise.

Naqueles anos, o carisma de um grande ator não era o Ter. Era o Ser. José Wilker exercia com mérito o carisma da sua real pobreza. Vestia a emblemática e surrada roupa caqui, meio à la Guevara. A pé, peregrinava sua legítima falta de dinheiro pela noite boêmia teatral, do Leme à Galeria Menescal, em Copacabana, e depois até Ipanema. Ou de ônibus. Ah, como era bonito ser artista pobre e revolucionário!

Era namorador. Comentava-se dele que as namoradas no mundo artístico eram passageiras, pois cortejava mítica noiva secreta, em casa de quem almoçava nos fins de semana, mesa posta, aliança no dedo direito, família em volta, pequena burguesia. Diziam que, com ela, e só com ela, Wilker iria um dia se casar.

Não foi.

Isso só conto para ilustrar que havia dois José Wilker. Aquele impulsivo, transgressor, iconoclasta, revolucionário, que falava bonito, quase discursando. Aquele pequeno burguês, com ambições de prosperidade.

Os dois José Wilker se fundiram, a partir de seu ingresso na televisão, que lhe deu a oportunidade e o palco para ser plenamente talentoso e se tornar um ator famoso nacionalmente, constituir família – algumas famílias – ter as casas amplas, com todas as estantes para todos os seus livros, fazer todos os grandes personagens que sempre quis, ser múltiplo, preocupar-se com a memória das nossas artes audiovisuais.

Já famoso, eu colunista escrevendo sobre TV, publiquei alguma incorreção o envolvendo. Em vez de me interpelar por telefone, pois nos conhecíamos bem, escreveu-me uma carta delicada. Fiz o reparo, assumindo o meu erro com ênfase.

Revolucionário em sua perspectiva da memória artística. Ordinário em suas ambições humanas de conforto, família.

Não foi um qualquer. Antes de tudo, um reflexivo. Preocupou-se com a pesquisa das artes.

Se eu fosse a Globo, catalogava sua biblioteca, sua videoteca, a discoteca, e lhes dava um nobre destino, para consulta orientada e franqueada. Realizava o último sonho do José Wilker.

(Hildegard Angel)

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