terça-feira, 9 de março de 2010

GERARDO MELLO MOURÃO


GERARDO MELLO MOURÃO

Tornou-se lugar comum, entre os militantes das letras, a afirmação de que quanto mais nos aprofundamos no local, mais nos tornamos universal. Fernando Pessoa foi um expoente dessa tese quando cantou que o rio mais belo do mundo era o que corria pela sua aldeia.
Sucede que o patrono da minha cadeira foi além dessa assertiva. Gerardo Mello Mourão, nascido no pé da Serra da Matriz, nas Ipueiras, soube dialeticamente combinar, de forma magistral e em linguagem incomparável, o arcabouço telúrico do ‘local’ e o manancial germinador do ‘universal’. Como ele próprio afirmou, cantou “as gitiranas das Ipueiras em Jerusalém, em Belém, no Pará, e em Belém de Judá, no lago de Tiberíades, no Mar Morto, na feira de Cafarnaum e na Cripta de Nazaré, onde o arcanjo Gabriel anunciou à Virgem o nascimento de Jesus”.

INFÂNCIA E JUVENTUDE

Quando ainda perambulava pelo jardim da infância, Mello Mourão foi levado para estudar em Crateús, onde teve como professor o prodigioso Padre Solon Farias, que “foi o primeiro homem a me dar a impressão de uma pessoa prodigiosamente inteligente e cheia de saber”. Padre Solon, percebendo a genialidade do menino Gerardo, convenceu a mãe a mandá-lo para o Sul. Alguns parentes do poeta encamparam a idéia, dentre entre eles Chagas Barreto, um promissor industrial de então, que se exaltou: "Leve o menino. Este menino vai ser um profeta, e ninguém é profeta em sua terra".
O próprio Gerardo conta os passos seguintes: “Depois, foi o mundo. O grande e estranho mundo. O Seminário holandês nas montanhas de Minas. Cresci e prosperei à sombra dos profetas barrocos do Aleijadinho, em Congonhas do Campo. Cresci pouco e prosperei menos. Depois, o Convento da Glória, a tomada de hábito em Juiz de Fora, onde o jovem clérigo, cumpridos os fervorosos estudos do latim e do grego, da Retórica e da Poesia, da Música, das Línguas vivas e mortas, das ciências e das artes — um verdadeiro curriculum de trivium e quatrivium, como se usava nos mosteiros medievais — era iniciado no conhecimento, na teoria e na prática da Ascética.
Em seguida, deixou o menino a sombra do claustro, a serena beleza de suas vestes talares de clérigo de Santo Afonso, a celestial harmonia do canto gregoriano e o odor dos incensos sagrados nos turíbulos rituais.

Caiu, então, no outro mundo, nesse triângulo das Bermudas em que desaparecemos, no abismo de cada dia, no trinômio de perigo e perdição e angústia, onde estão os aguilhões do quotidiano, a que os doutores da fé chamam de "os três inimigos do homem: — o mundo, a carne e o diabo". Entre esses três inimigos, o menino passou a viver perigosamente, por vocação e por aprendizado. Nietzsche, um dos mestres de sua adolescência, e ainda hoje um companheiro das horas temerárias do pensamento, acendeu-lhe a paixão de viver perigosamente — única forma pela qual o homem pode escapar às dimensões menores, que levam à vala comum”.

AVENTURAS

“Conheceu e terçou armas — todas as armas — com o Senhor Diabo, com o Senhor Mundo e com a Senhora Carne. Conheceu a política, com suas glórias efêmeras, sua ambição de construir, a mais de sua história pessoal, a história da sociedade. Conheceu o poder e a queda. Subiu à tribuna dos parlamentos e freqüentou os palácios das salas de passos perdidos do poder. Venho de longe, de muito longe. Venho do subterrâneo das conspirações e dos golpes armados contra a tirania. Venho do fundo dos cárceres de duas ditaduras e comi, como o Dante, o sal do exílio, depois de fugir rocambolescamente aos esbirros da repressão, atravessando as fronteiras temerárias do Paraguai, para viver durante alguns anos entre a cordilheira e o mar, no doce e querido país do Chile”.
O país em que viveu mais tempo, no exterior, foi o Chile, onde deu aulas na Universidade Católica de Valparaíso. Na década de 1980, morou em Pequim, na China, onde foi correspondente do jornal Folha de São Paulo. Mais precisamente, foi o primeiro correspondente brasileiro e sul-americano na China.


OBRAS

Entre os seus livros mais importantes, destacam-se: O Cabo das Tormentas (1950); O Valete de Espadas (1960); a trilogia poética Os Peãs, composta pelos livros O País dos Mourões (1963), Peripécias de Gerardo (1972) e Rastro de Apolo (1977); A Invenção do Saber (1983); a epopéia Invenção do Mar (1997 - Prêmio Jabuti de 1999); Cânon e Fuga (1999); Os Olhos do Gato (2001) e O Bêbado de Deus (2001) e O Nome de Deus (obra póstuma in: Confraria 2 anos, 2007).

RECONHECIMENTOS

Carlos Drummond de Andrade declarou-se "possuído de violenta admiração pelo imenso, dramático e vigoroso painel" da poesia de Gerardo, pois sabia do incomensurável manancial telúrico do magnífico do bardo de Ipueiras, que "atestará para sempre a grandeza singular e a intensidade universal da poesia". "— Esta poesia — escreveu ele — foi tudo quanto sempre desejei escrever na vida, e nunca tive força. Gerardo Mello Mourão teve".
E Ezra Pound assentou: — "Toda a minha obra foi uma tentativa de escrever a epopéia da América. Não o consegui. Ela foi escrita no poema espantoso do poeta do País dos Mourões".
Pela magnitude de sua obra, Gerardo Mello Mourão foi indicado por uma Universidade Americana, em 1979, para o Prêmio Nobel de Literatura.
Em 1997, a Guilda Órfica Européia, uma secular irmandade internacional de poetas, o elegeu o poeta do século XX.

GERARDO POR MELLO MOURÃO

"Sou católico, apostólico, romano. Acho que as pessoas de outras religiões têm as mesmas chances de salvação. Sou cearense há mais de quatrocentos anos. Sou casado, fui viúvo. Tenho três filhos, o que acho muito importante, pois creio, como está no Credo de Santo Atanásio, na ressurreição da carne. E os filhos são a prefiguração da ressurreição da carne. Amo as alegrias do corpo e da alma. Mas estou afetado pela tristeza existencial (ou será ontológica?) do ser humano, pois sei, como Léon Bloy, que a maior desgraça que pode ocorrer ao ser humano é a desgraça de não ser santo. Eu não sou santo. Esta é a tristeza medular de minha vida. Pois nasci e fui criado para ser santo e manter intacta a imagem e semelhança de Deus. Tal qual a tinha em meu dia de nascimento, a 8 de janeiro de 1917, em Ipueiras, no Ceará, e na data de meu batismo, quatro dias depois providenciado pelos cuidados pressurosos de minha mãe, no dia 12 do mesmo mês, ministrado na Igreja de Nossa Senhora da Conceição por nosso primo, Monsenhor José de Lima. Minha mãe era uma pessoa dramaticamente religiosa. Eu tinha um irmão mais velho. Minha mãe leu na vida de São Luís Gonzaga, que sua mãe Branca de Castela, fizera um voto a Deus: queria ver seu filho morto antes que cometesse um único pecado mortal. Quando meu irmão morreu, ela se convenceu de que seu voto o matara. E retirou de mim a promessa terrível. Resultado: estou vivo e fui maculado por quase todos os pecados mortais, os chamados pecados mortais. Quem quiser que os imagine. Etc."

POETA

Ruy Câmara narra:
“Lembro-me que, após uns dias em sua Ipueiras, Gerardo regressou a Fortaleza e fomos juntos para um evento na Assembléia Legislativa. Na tribuna, após haver falado das misérias que testemunhara durante sua viagem ao sertão do Ceará, ele perguntou aos deputados: alguém poderia dizer para que serve um poeta num Estado pobre em Cultura, Educação e Saúde? Após um tempo de silêncio frustrante, eis que ele afia as palavras na sua língua de pedra e diz: ´Neste mundo o que dura é o que foi fundado pelos poetas e não pelos especialistas, que são meros figurantes de uma tarefa ancilar. Não são protagonistas do saber nem da história. Nunca um especialista criou algo duradouro nem embasou uma nação.´

Ao ouvir isso, suspeitei que Gerardo utilizou o eufemismo ´especialista´ para não deixar os deputados que o aplaudiam de saia-justa. E prosseguiu: ´A Grécia foi fundada pelo poeta, Homero, cego e gênio. O império romano foi inspirado pelo poeta, Virgílio e por um escritor que se fez general, Caio Julio César. O mundo judaico foi fundado pelos poetas das profecias, Jeremias, Isaias, Ezequiel, Daniel e pelos Cantos do rei Davi. A civilização mulçumana foi fundada pelo poeta Maomé, seu senhor e soberano. A China e a Ásia Oriental foram fundadas pelo poeta Kung-Fu-Tze, que conhecemos por Confúcio. A Itália foi fundada por Dante, poeta absoluto. Churchill animava suas tropas contra o fogo de Hitler, enviando aos soldados os versos de Shakespeare. Os soldados germânicos levavam na mochila os Cantos de Rilke e os hinos de Hölderlin. E o que seria de Portugal sem Camões e Pessoa? Da França sem Voltaire, Baudelaire, Lamartine e Hugo? E o Ceará sem seus poetas, renegados e esquecidos? E finalizou dizendo: foi o Deus poético e dialético que engendrou o pensamento mítico, o tempo divino do homem, mas foi a verdade helênica que deu vigor à noção de liberdade e democracia, verdade luminosíssima que fundou o homem livre.´ Os aplausos não impediram o nosso poeta de assim dizer: ´É para preencher o vazio dos espírito humano que serve um poeta com sua poesia.´

(Por Júnior Bonfim)

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