quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A RESSUREIÇÃO DA UTOPIA!

Admiro profundamente o músico brasileiro Milton Nascimento. Ele pertence a uma estirpe musical que soube aliar, com fulgurante talento, a boa música e o bom conteúdo. Letra e melodia se misturando em um baile de grandeza, itinerário telúrico, exercício reflexivo, eflúvio de excelência.

Dentre suas canções, tenho especial predileção por “Coração Civil”. Ela aborda um tema que me é caro: a utopia. Admiremos a letra, produto de uma parceria de Milton e Fernando Brant: “Quero a utopia, quero tudo e mais/ Quero a felicidade nos olhos de um pai/ Quero a alegria muita gente feliz/ Quero que a justiça reine em meu país/ Quero a liberdade, quero o vinho e o pão/ Quero ser amizade, quero amor, prazer/ Quero nossa cidade sempre ensolarada/ Os meninos e o povo no poder, eu quero ver

São José da Costa Rica, coração civil/ Me inspire no meu sonho de amor Brasil/ Se o poeta é o que sonha o que vai ser real/ Vou sonhar coisas boas que o homem faz/ E esperar pelos frutos no quintal/ Sem polícia, nem a milícia, nem feitiço, cadê poder?/ Viva a preguiça, viva a malícia que só a gente é que sabe ter/ Assim dizendo a minha utopia eu vou levando a vida/ Eu vou viver bem melhor/ Doido pra ver o meu sonho teimoso um dia se realizar”.

A Utopia – cujo berço etimológico é a união dos radicais gregos οὐ, ‘não’ e τόπος, ‘lugar’; portanto, o ‘não-lugar’ ou ‘lugar que não existe’ - tem como significado mais comum a idéia de um território ou mundo ideal, imaginário, fantástico – produto da usina de sonhos da mente humana. (O termo foi popularizado por Thomas More, pois serviu de título para uma de suas obras escritas em latim por volta de 1516. Segundo a versão de vários historiadores, More se fascinou pelas narrações extraordinárias de Américo Vespúcio sobre a recém avistada ilha de Fernando de Noronha, em 1503. Thomas More decidiu então escrever sobre um lugar novo e puro onde existiria uma sociedade perfeita.)

O fato é que vi com muita alegria, na recente disputa de primeiro turno da eleição presidencial, a ressurreição da utopia na política. A líder desse movimento pascal foi Marina Silva, a candidata do PV.

Marina é descendente de cearenses. Nasceu nas florestas do Acre e viveu na carne e na alma, no coração e na consciência, os estertores da extrema pobreza, os astres e desastres da vida pública. Sentiu no peito as flechas da adversidade, leu os signos das matas e adquiriu a noção mais correta de aldeia global. Descobriu no pulmão do planeta como construir uma proposta de oxigenação da política nacional.

Sua maior contribuição, ao nosso sentir, não foi a de trazer ao púlpito do debate eleitoral a imperiosa agenda da compatibilidade do desenvolvimento com respeito ao equilíbrio do meio ambiente. Seu mais importante contributo foi, indiscutivelmente, o da higienização da prédica política. A necessidade premente e a importância cardeal da eliminação desse discurso tóxico “entre PT e PSDB, agredindo-se mutuamente, sem conseguir ver mérito em nada um no outro; é a política velha, de ter de destruir o outro, ter de desqualificá-lo”.

Esse respeito pelo outro, embora suas idéias sejam absolutamente contrárias às nossas, é uma das principais facetas daquilo que se convencionou chamar de ética. Marina entrou e saiu da disputa sem recorrer ao desespero, ao vale-tudo, à máxima de que ‘em política, o feio é perder’. Em verdade, o feio – na política e na vida – não é perder uma batalha, mas abrir mão da dignidade, da construção de princípios, do culto aos valores essenciais.

Na nossa Crateús, como em quase todas as urbes do território nacional, ainda prevalece esse modo corrosivo de agir político. Porém, impende questionar: - Por que, para me eleger, tenho que explorar os defeitos do outro ao invés de apresentar minhas qualidades?... - Por que, ao assumir o poder, tenho que seguir a mesma rota obsessiva de buscar desqualificar os antecessores?...

Embora já tenhamos todos transigido com essa prática, julgo que podemos dela nos libertar e construir alternativas. Há algum tempo suscitei esse debate íntimo e bradei em outra crônica: ‘Abramos as pálpebras embaçadas, sacudamos a poeira das decepções, revigoremos o espírito, desbravemos novos caminhos, recuperemos a utopia, lancemos um outro olhar sobre o fazer político e marchemos na rota de uma cidade que cultue a justiça e a fraternidade. Crateús merece!’

Alguém pode dizer que isto é sonho, devaneio, utopia! Pode ser. Mesmo assim, prefiro seguir na mesma estrada de Eduardo Galeano: “A utopia está lá no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.


(Júnior Bonfim, na edição de hoje do Jornal Gazeta do Centro Oeste, Crateús, Ceará)

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