domingo, 3 de julho de 2011

DEVO A ITAMAR A AUDÁCIA DE TER ME NOMEADO - DIZ FHC

Acabo de saber da morte de Itamar. Recordo vivamente a última vez que o vi, no almoço oferecido ao presidente Barack Obama, em março.

Encontrei-o jovial, brincalhão, parecendo feliz. Recordei-me imediatamente do Itamar meu colega no Senado. Nossas relações na época eram superficiais, mas cordiais e sempre alegres.

Quando fui líder do PMDB, no fim dos anos 80, ele era um liderado rebelde, sem perder as boas maneiras.

Uma vez ficamos até altas horas da noite para aprovar um aumento do ICMS, a que Itamar se opunha. Ele obstruía com afinco invejável e tiradas e apartes oportunos, não necessariamente ligados ao tema em debate.

No meio tempo, eu e ele brincávamos um com o outro, enquanto na tribuna os argumentos eram severos.

Assim foi Itamar a vida inteira: persistente em seus objetivos, sempre civilizado, discreto, vivaz e, se necessário, contundente.

Quando à luz dos acontecimentos políticos parecia claro que Itamar se transformaria em presidente da República, tive a surpresa de ser chamado por ele, por intermédio do senador Jutahy Magalhães, para uma conversa.

Mineiramente, ele me perguntou: "O que você acha que vai acontecer?". Repliquei o óbvio: "Você será presidente da República".

Daquele dia em diante, passamos a conversar com frequência e a debater, junto com outros amigos, quase tudo, desde a formação do novo governo até as ações preliminares a serem tomadas.

HABILIDADE POLÍTICA

Um dia, ele me perguntou se eu aceitaria ser ministro do Exterior. Disse-lhe que sim, mas que isso não era condição para meu apoio e que poderia continuar a ajudá-lo no Senado.

De quando em vez, eu perguntava quem seria o ministro da Educação, até que me indagou de chofre: "Você quer ser ministro da Educação?". Respondi que não, queria apenas saber o nome de quem seria para evitar que a área fosse objeto de clientelismo. Ele sorriu, não me disse quem seria, mas assegurou que não havia perigo. De fato, nomeou um nome técnico que teve ação positiva.

Conto isso para ressaltar que Itamar sabia navegar nos mares encapelados da política, sabia dissimular para evitar o pior e tinha compromissos com o interesse público.

Neste momento de alguma lassidão nos costumes, vale recordar que na ocasião em que, sem motivos substanciais, uma CPI colocou em dúvida o comportamento de um de seus ministros mais chegados, ele não teve dúvidas em aceitar o afastamento provisório do amigo, até que ficou comprovado que não havia razões para demiti-lo.

Noutra oportunidade, diante da pressão de denúncias capitaneada por um poderoso senador, Itamar resolveu recebê-lo e convocou a imprensa para que escutasse o que lhe diriam e para que visse abertamente como ele reagiria.

Em matéria de deslizes que ferissem os interesses do povo, Itamar não hesitava. O homem discreto e cordial se transformava no presidente austero, incorruptível.

NO GOVERNO

Devo a ele a audácia de nomear um sociólogo sem grande experiência administrativa para o Ministério da Fazenda. Mais: apoiou tudo que eu e minha equipe propusemos para fazer o que no início foi o Plano FHC e se transformou no Plano Real.

Sem o apoio irrestrito do presidente, nada do que foi feito poderia ter sido aprovado. E isso em matéria que nem sempre era da preferência de Itamar.

Preocupado que foi a vida inteira com atender aos mais pobres, temia que a contenção fiscal necessária para assegurar a estabilidade da economia pudesse prejudicar os trabalhadores.

Não obstante, aceitou com responsabilidade histórica o que teria de ser feito, embora às vezes com a alma travada.

As repercussões positivas do Plano Real para o povo e para a economia permitiram que Itamar assistisse sua consagração no fim do mandato. Mais do que merecida, a consagração de um homem que tinha forte sentido ético na política e que, com sua simplicidade e despojamento, serve cada vez mais de exemplo ao Brasil atual.

Pessoalmente, devo a Itamar não só o ter-me apoiado como ministro, mas o haver aprovado com entusiasmo minha candidatura ao Planalto. A despeito das reviravoltas da política que nem sempre permitiram que estivéssemos no mesmo lado quando exerci a Presidência, sempre guardei respeito por tudo que Itamar significou para o Brasil.
Só lamento não ter tido mais oportunidades de desfrutar, com a tranquilidade que só os anos trazem, uma convivência mais frequente.


(FERNANDO HENRIQUE CARDOSO foi presidente da República (1995 a 2002) e ministro da Fazenda no governo Itamar.)

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