domingo, 17 de março de 2013

A ALGA E O SILICONE

Até quando a mistificação resistirá ao ciclo da transparência que a tecnologia inaugura em muitas frentes do cotidiano? Não chegará o momento em que o ser humano, por mais esforço que realize para encobrir a verdade, será impelido, pelo apuro de aparatos tecnológicos, a colocar os pontos nos Is?

Episódios da esfera criminal, aqui e alhures, têm dado vazão à hipótese de que o caminho da verdade, sempre estreito ao longo da história, ganha amplitude na modernidade sob o empuxo de engenhosa estrutura que abriga técnicas sofisticadas de investigação, máquinas que flagram o movimento nas ruas, retórica mais científica de operadores do Direito para desmontar versões e hipóteses, tudo convergindo para desvendar fatos polêmicos.

O goleiro Bruno, depois de negar por bom tempo, acabou admitindo ter participado do episódio que culminou com a morte da amante, a ex-modelo Eliza Samudio. Noutro caso, vestígios de alga, descobertos por um biólogo no sapato do ex-policial e advogado Mizael Bispo, foram usados para comprovar que o indiciado esteve na represa em que foi encontrada a ex-namorada Mércia Nakashima. Um gol da tecnologia. Já dedos de silicone com impressão digital de médicos e enfermeiros, usados para fraudar o ponto eletrônico de um hospital público, em São Paulo, foram flagrados pela Polícia. Nesse caso, o tiro da tecnologia saiu pela culatra.

Chamou a atenção, nesses casos de ampla repercussão, o emprego da tecnologia; de um lado, como ferramenta para descobrir a verdade, de outro, para encobri-la. A alga e o silicone se apresentaram como anverso e reverso da tecnologia que começa a balizar costumes e práticas.

Dos eventos criminais acima mencionados, pinça-se a hipótese de que o uso de ferramentas tecnológicas tanto pode contribuir para pavimentar os caminhos do Direito, iluminar o altar da Justiça e arejar a administração pública quanto pode servir de escudo a criminosos.

Questão intrigante é: por que têm aumentado a criminalidade, quando se sabe que a lupa é, hoje, mais calibrada? Hipótese razoável comporta fatores como deterioração nos padrões de vida das margens, conflitos provocados por gangues, assassinatos cometidos por grupos paramilitares (como no passado, em São Paulo e Rio de Janeiro), enfim, clima generalizado de insatisfação.

Não é este o caso. A paisagem, mesmo exibindo buracos nas frentes da saúde, educação e segurança, não chegou a um nível capaz de produzir rasgos de monta no tecido social.

Se fixarmos a vista no hilário caso dos dedos de silicone, podemos enxergar outra hipótese. O ilícito parece ter ligação com o baú cultural, precisamente com a gaveta que guarda traços do caráter nacional, como engenhosidade, criatividade, matreirice, vivacidade, ou, como se costuma dizer, o jeitinho brasileiro.

Ora, à primeira vista, o ponto eletrônico seria barreira intransponível para feitores de maracutaias. Como sair da enrascada? Manipulando a química do silicone para tirar a impressão digital de profissionais de estabelecimentos públicos; pagando um pedágio para o responsável pelo sistema; e, pimba, passando os dedinhos no aparelho. Equação final: médicos que deveriam dar cinco plantões por mês acabavam trabalhando apenas um.

Eis a sacada do jeitinho que jamais tira férias. Vez ou outra ele aparece mal ajambrado, nivelado por baixo. Basta ver degustações apressadas de bolachas e chocolates em corredores de supermercados, que acabam com os “surrupiadores” tendo de ver sua estrepolia em vídeos gravados; bem arrumado, o jeitinho mostra a cara no andar mais elevado das camadas.

Por exemplo, quando serve para ajustar contas públicas e maquiar metas fiscais. Guido Mantega, o ministro da Fazenda, pediu ao prefeito Haddad, de São Paulo, para adiar o reajustamento de passagens no início do ano. Maneira de aliviar o índice de inflação. A maquinação envolveu outras manobras, como o abatimento dos investimentos realizados no PAC e resgate de R$ 12,4 bilhões do Fundo Soberano do Brasil para cumprir a meta de superávit primário de 3,1% do Produto Interno Bruto.

O jeitinho é uma faceta do caráter brasileiro, usado como chave para abrir o cadeado da burocracia ou como manobra para fugir ao formalismo, de ranço bacharelista, que se deixa ver na pletora de leis, decretos, medidas, portarias, regulamentações.

Alguns imaginam que o cobertor legalista é capaz de cobrir nossa complexa e mestiça formação cultural. Ademais, como lembra Roberto daMatta, o “jeitinho se confunde com corrupção e é transgressão, porque ela desiguala o que deveria ser obrigatoriamente tratado com igualdade”.

Daí a necessidade de se combater a persistência do estilo aristocrático de lidar com a lei, que, segundo o antropólogo, “induz o chefe, o diretor, o dono, o patrão, o governador, o presidente, a passar por cima da lei” porque dela se acham donos.Por isso, o bordão continua fazendo eco: “todos são iguais perante a lei, mas a lei não é igual para todos”.

De tão enraizado, o jeitinho acaba colaborando para a formação do estado de anomia, um território dominado pela desordem. Veja-se o estacionamento em vagas para pessoas idosas e deficientes. Ou as faixas para pedestres e bicicletas. A desmoralização se escancara à vista de todos.

O amortecimento social chega a ponto que a barbárie se espalha por ambientes que, por natureza, deveriam ser exemplos de grandes cuidados. Um hospital, por exemplo. De seus profissionais espera-se zelo pela vida. Daí a perplexidade ante a monstruosidade que teria sido perpetrada num hospital evangélico de Curitiba, onde uma médica é acusada de ter mandado desligar aparelhos de pacientes. A se confirmar a denúncia, estamos diante de uma “técnica de alto impacto” para “desentulhar” uma UTI e, assim, fazer correr a fila em um corredor que mais se assemelha ao da morte.

Baixem-se as cortinas com o Barão de Montesquieu espiando a cena e proclamando: “parece-me que não há povo que não tenha sua crueldade particular”. No nosso caso, com um jeitinho todo providencial.



(Gaudêncio Torquato)

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