quinta-feira, 12 de julho de 2012

LOURO DA CRUZ


Mesmo a Quinta Avenida da Big Apple, cidade de New York, magnífica e badalada com um redemoinho de ianques margeados por imponentes prédios de aço e vidro, ou a majestosa Avenue des Champs Élysées, na cidade luz chamada Paris, com o Arco do Triunfo bonapartiano grudado ao Museu do Louvre onde se esparrama um sorriso enigmático da Mona Lisa, e até mesmo a curitibana Rua das Flores, enfeitada de girassóis e de curiosos turistas que assistem diariamente ao encontro dos Cavaleiros da Boca Maldita, não valem o meio fio das calçadas da Avenida Frei Vidal da Penha.

Desde a época em que nas bodegas, uma em cada esquina, os fregueses chegavam fiando açúcar e farinha em raquíticas cadernetas, até o dia em que um nigérrimo tapete cobriu a poeira do tropel dos cavalos que passavam rumo ao centro, a Rua da Cruz foi, e sempre será, uma consonante artéria do meu coração.

A meninada se divertia urdindo travessuras. Éramos pássaros sem plumas aprendendo a voar. Curumins alumbrados entre duendes, magos, mães-d’água e ilusões diluídas no ar. Um duende-menino, disfarçado de gente, ia à escola. A professora, Dona Delite, já o preferira como a um eleito, pela perspicácia e impetuosidade em aprender. Sabatinava-o no 3º ano primário, como exemplo para o restante da turma: — Juracy, responda bem rápido, Sete vezes oito? Ele nem pestaneja: — Cinquenta e seis! Oito vezes sete? Nove vezes quatro? Metralhava-o. Às vezes respondia quase antes da mestra formular uma pergunta. (Eu era um bom aluno... Um bom aluno! Recorda-me saudoso, o próprio Louro da Cruz, dentro de um corpo sofrido pela demolição acrimoniosa do tempo.)

O magricelo vivaz, que apontava para um futuro promissor de uma meninice esperta, tinha um sonho: ser padre. Esteve no seminário de Baturité, dando textura e forma a esse desejo, mas como disse o p(r)o(f)eta Augusto dos Anjos: Vão-se os sonhos nas asas da descrença e voltam nas asas da esperança. Um vírus lhe enche o corpo de contagiantes erupções que se espalham por toda escola eclesiástica. O sarampo diluiu uma aspiração e a transformou em revolta. Foram longos os dias em que vivia da raiva de viver, de não poder mais voltar ao seminário. Deixou de estudar, desentendeu-se com a incompreensível família e foi dormir no mato, como um triste Gmono das árvores. Da mesma forma que o mundo enferma, o tempo também cura. Logo um rebelde e cabeludo Juracy estava vendendo o apetitoso Bauru, o primeiro sanduiche peculiar da cidade, para uma seleta clientela, na Lanchonete Jovem Guarda: vinham os doutores, os ricos comerciantes, os oficiais do 4º batalhão e quando chegava um cidadão comum, tinha que trazer uma boa porção de moedas para saboreá-lo e com direito a ouvir o Louro cantar, “ E que tudo mais vá pro inferno” ou “Olha o brucutu, bru-cu-tu!”, tudo proveniente de uma caixa de bananas verdes, herança de um bodegueiro falido chamado Luizinho Filó, onde o Louro costumava dormir, no chão frio forrado com palhas de bananeiras.

Juracy prospera, pois os ventos da boa sorte o bafejava. Ele sempre soube acautelar-se e pensa em todos os pormenores. Adquire um imenso terreno onde pretende construir uma Casa de Shows e trazer nada mais, nada menos, que o Rei da Juventude, Roberto Carlos. O 4º Batalhão, de partida para Barreiras, na Bahia, o presenteia com abundante material de construção. O único obstáculo, como pedra no meio do caminho, era um imenso e antiguíssimo cruzeiro de aroeira assentado sobre um grosso pedestal de bentos tijolos de 27 quilos, e o único jeito era a demolição. Rapidamente, alavancas e picaretas o degringola. Uma multidão se aglomera no final da Frei Vidal, descrente no que via. O Vigário da cidade, Pe. Bonfim, chega no seu motorzinho e constata o grande perigo: — Mas seu Juracy, como pôde fazer isso? Este cruzeiro foi enfincado na entrada da cidade pelo santo Pe. Juvêncio para nos proteger e nos livrar da tentação do demônio e você o derruba! Pois está amaldiçoado!

O verde Jeep da polícia, um willys 51, leva-o para a cadeia publica, mas logo é solto. O delegado não ver legalidade naquela despropositada prisão. Juracy tomou o devido cuidado de enterrar os mastros de aroeira no chão da boate encoberto pelos trilhos de ferro do batalhão, para que a maldição daquele dia nunca viesse à tona. Foi uma indispensável prudência do conhecidíssimo Louro da Cruz, como passou a ser chamar, a partir de então.

O Rei da Jovem Guarda nunca deu o seu ar da graça por aqui, mas o empresário Juracy trouxe, entre outros, para soltar suas veludosas vozes a cantora e musa pornô Gretchen, o cigano Sidney Magal ameaçando "Se Te Agarro Com Outro Te Mato", o axé music de Chiclete com Banana, Roberta Miranda cantando que nem A Magestade o Sabiá, a voz potente de Gessé, Biafra celebrando o Sonho de Ícaro e Martinho da Vila que desfilou pelas ruas da cidade com um grupo de mulheres a festejar a Rainha de Iemanjá.

Comprovando sua predisposta felicidade para a sorte, na véspera de uma das piores agressões ao cidadão brasileiro, quando as pessoas perderam dinheiro em contas bancárias pelo famigerado Plano Collor, Louro da Cruz retira todo seu money da poupança e compra a sede da AABB, onde hoje guarda a sua novíssima galinha dos Ovos de Ouro, o animadíssimo Trenzinho da Alegria.

Ali, naquele valorizado prédio que é hoje a sua casa, Louro passou por uma das mais horríveis experiências humana. Devido a um aperto financeiro, entra em crise de depressão. Isolado, achando-se no abandono total, aprofunda-se cada vez mais numa imaginária toca. A ajuda de repente chega e o levam para Fortaleza em busca de cura. Na sala de um psiquiatra, subitamente dois seguranças o agarram e jogam no bojo de um horrível manicômio. Amarga o desespero dos desesperos, entre dementes de todas as espécies, mas o susto trás sua sanidade de volta e um dos guardas percebe que aquele paciente, de conversa equilibrada, não é louco, e faz tudo para tirá-lo daquela situação. (O cidadão Louro da cruz, com os olhos lagrimejando, disse-me: ”— Raimundo, hoje eu sei que só o inimigo é que nunca nos trai.” Ali, em sincera confissão, eu vi uma longa dor e uma grande mágoa escoarem da alma de um incansável e honrado trabalhador). Matutando seriamente no que me disse Juracy, lembrei-me de um velho amigo que nunca me traiu, meu inseparável silêncio.

Aproveito a ocasião e faço uma pergunta para matar uma curiosidade: — Juracy, o povo diz que você, quando não mais existir, deixará todo seu patrimônio para a Igreja, é
verdade?

Solta um disfarçado sorriso que lhe escapole da face e me esclarece:
- Não, eu nunca disse isso, mas quando eu morrer pretendo deixar tudo que tenho numa organização para promover o bem-estar e a alegria das crianças pobres da minha cidade!

Despeço-me deste grande promotor da felicidade e antes que parta, ele ainda me diz:
— Raimundo, eu sou candidato a vereador nessa eleição, pelo Partido Verde, e conto com seu voto!

Afirmo como seria bom termos um vereador daquela qualidade nos representando no legislativo municipal, ele que já faz muito pelo povo, fomentando alegria. E me vem à mente a criança sonhadora que ia à escola da dona Delite, mostrando agora uma serenidade de padre, mesmo sendo um animador de festas, de danças e de músicas. Sempre acreditei no significado dos nomes próprios que corroboram nossa existência, pois Juracy que dizer aquele que faz o bem e mesmo assim eu lhe acrescentaria um Duney, o Duende da alegria. Que a Consciência Eleitoral de Crateús te coloque sentando numa cadeira da câmara dos vereadores, Juracy Duney do Partido Verde, uma associação de duendes, propícia aos espíritos fortes, honestos e trabalhadores como convém ao Mago da Alegria, chamado Louro da Cruz.

Raimundo Candido

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