sábado, 8 de abril de 2017

EXTINGUIR O TCM?!


Abril de 1893. Floriano Peixoto, Presidente da República, determinou que seu Ministro da Viação, Limpo de Abreu, nomeasse um irmão de Deodoro da Fonseca e fixou a quantia a ser paga. O novel Tribunal de Contas, reputando ilegal o ato, ante a ausência de dotação orçamentária, negou–lhe o registro. Inconformado, Floriano disse:

- “São coisas do meu amigo Ministro da Fazenda, que criou um Tribunal superior a mim. Precisamos reformá-lo”.

- “Não!” replicou o Ministro da Fazenda, Serzedelo Corrêa. “Superior a Vossa Excelência, não. Quando Vossa Excelência está dentro da lei e da Constituição, o Tribunal cumpre as suas ordens. Quando Vossa Excelência está fora da lei e da Constituição, o Tribunal lhe é superior. Reformá-lo, não podemos”. Após o episódio, o Ministro deixou o cargo.

Ao assistir, estupefato, as notícias sobre a proposta de emenda constitucional que visa extinguir o Tribunal de Contas dos Municípios do Ceará, lembrei do episódio acima. Parece que as Cortes de Contas, como os demais organismos de fiscalização e controle dos negócios públicos, nasceram com a missão excelsa de enfrentar adversidades provenientes da ira dos poderosos de plantão, posto que um dos mais basilares fundamentos das nações civilizadas, a reverência aos ditames legais, constitui miragem para as nossas novas gerações, que ainda presenciam ‘a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que é subtraída, em tenebrosas transações’ ...

Ao elencar as justificativas para a criação da primeira Corte de Contas em nosso País, o mestre Rui Barbosa assinalou: “Convém levantar, entre o poder que autoriza periodicamente a despesa e o poder que quotidianamente a executa, um mediador independente, auxiliar de um e de outro, que, comunicando com a legislatura, e intervindo na administração, seja não só o vigia, como a mão forte da primeira sobre a segunda, obstando a perpetração das infrações orçamentárias, por um veto oportuno aos atos do Executivo, que direta ou indireta, próxima ou remotamente, discrepem da linha rigorosa das leis de finanças."

Nessa esteira, o ex-Ministro do STF José de Castro Nunes – que, se entre nós, celebraria 134 anos de nascimento no próximo dia 22 de dezembro de 2016, proclamou: “As Cortes de Contas não são delegações do Parlamento, são órgãos autônomos e independentes. Mas existem em função da atribuição política dos Parlamentos no exame das contas de cada exercício financeiro.”

Ambos viram ratificadas suas opiniões pelo magistério de Celso Antônio Bandeira de Melo:

“Tem-se, pois, que embora o Texto Constitucional nos afirme, no artigo 6º, que são Poderes da União, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, o certo é que, paralelamente a esses três conjuntos orgânicos, criou-se outro conjunto orgânico que não se aloja em nenhum dos três Poderes da República. Previu-se um órgão – o Tribunal de Contas – que não está estruturalmente, organicamente, albergado dentro desses três aparelhos em que se divide o exercício do Poder. Como o Texto Constitucional desdenhou designá-lo como Poder, é inútil ou improfícuo perguntarmo-nos se seria ou não um Poder. Basta-nos uma conclusão, a meu ver irrefutável: o Tribunal de Contas, em nosso sistema, é um conjunto orgânico perfeitamente autônomo.”

Eis, pois, a essência das Cortes de Contas.

Assento as premissas acima para opinar sobre essa Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que tramita na Assembleia Legislativa Cearense e visa a extinção do nosso TCM, sexagenária instituição com vultoso e vistoso álbum de atuação em todos os municípios da Terra da Luz.

Quais as razões aparentes que estão postas ou expostas à comunidade?

Segundo o autor, deputado Heitor Férrer, seria: gerar economia para os cofres públicos, evitar a politicagem no âmbito do Tribunal e que o estado tivesse apenas uma Corte de Contas, como a maioria dos estados da Federação.

Com todo respeito ao Parlamentar, nenhuma das alegações se sustenta em um debate mais demorado sobre a matéria.

O argumento da economia cai por terra quando a própria PEC prevê que as previsões orçamentárias de receitas e despesas apenas serão transferidas para o TCE. Ao reverso, ocorrerá um prejuízo: Conselheiros e Auditores do TCM ficarão em disponibilidade, percebendo todas as vantagens atuais. Ou seja, o Estado gastará quase R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais) com servidores públicos altamente qualificados que permanecerão remunerados sem qualquer contrapartida de trabalho.

O enredo de que os cargos de Conselheiros do Tribunal são silos de sinecuras, privilegiadas moedas de troca politiqueira ou espaços de premiação para amigos dos governantes de plantão – pode ser enfrentado não com a eliminação do órgão, mas com a definição de critérios impessoais, como o Concurso de Provas e Títulos.

Por fim, a assertiva de que a maioria dos estados só possui um Tribunal de Contas, não pode ser usada como parâmetro para confortar o arrazoado em favor da eliminação do TCM/CE. A atuação fiscalizatória repartida que existe no Ceará produziu, em ambas as Cortes de Contas (TCM e TCE) expertises diferenciadas. Se, na balança da Justiça, há um prato pesando mais, indubitavelmente é o do TCM. (Advogo na seara eleitoral e, durante a eleição deste ano, por exemplo, não vi um processo sequer de contas públicas irregulares – com base artigo 1º, inciso I, alínea “g” da Lei da Ficha Limpa - oriundo do TCE. Todos, absolutamente todos, têm como fonte a extensa lista fornecida pelo TCM.). Logo, o acúmulo de experiência, a qualidade técnica e a habilidade pericial dos servidores do TCM permitem-nos afirmar que esse processo abrupto, açodado, irracional, à sorrelfa e de afogadilho há que ser estancado.

Extinguir um órgão quase secular como o TCM/CE, sem qualquer consulta popular, debate público ou audiência da sociedade civil organizada é alojar um projétil no coração da cidadania. Ergamo-nos contra esse vilipêndio!

(Júnior Bonfim, dezembro de 2016)

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